Introdução
O ocaso do século XV trouxe consigo o fim da política de tolerância religiosa que, por incontáveis anos, havia vigorado nas regiões da Península Ibérica sob domínio islâmico. Categorizados como “povo do livro” pelo Corão, os judeus haviam gozado, até aquela data, de relativa liberdade de crença, fato que transformou os territórios hoje ocupados por Portugal e Espanha no centro da vida judaica no mundo. Com a reconquista, no entanto, os sucessivos reis católicos de ambos os países ibéricos restringiram sobremaneira as liberdades individuais dos indivíduos não cristãos, tendo sido especialmente zelosos com a repressão aos seguidores do judaísmo.
Em território português, os judeus constituíam uma importante parcela da população, sendo prevalentes, sobretudo, nas áreas técnicas e no comércio, campos de atuação imensamente valorizados à época em virtude de sua essencialidade para a nascente mercancia marítima. Temeroso em perder tão importante fator demográfico de seu reino, sem, entretanto, contrariar a virulenta pressão espanhola pelo desterro de todos os pagãos, o então Rei Dom Manuel 1 expediu um édito banindo todos os que não fossem cristãos ou se recusassem a se converter ao cristianismo, na esperança de que a linguagem branda utilizada no instrumento propiciasse uma conversão apenas “pro-forma” dos judeus do seu reino, mantendo-os nele.
Contrariamente ao esperado, no entanto, os judeus de Portugal afluíram em grande número aos portos, esperando para serem embarcados alhures. Em resposta, o monarca ordenou o fechamento de todas as saídas marítimas portuguesas, instruindo que se batizassem compulsoriamente todos os que outrora haviam optado pelo desterro. Estes cristãos-novos, marranos ou anussim, como passaram a ser conhecidos os forçadamente batizados, passaram praticar em segredo a antiga fé mosaica, havendo sido alvos de violenta perseguição pelos órgãos inquisidores portugueses, não obstante muitos tenham, eventualmente, abraçado de forma genuína o catolicismo.
Não poucos optaram, com efeito, pelo exílio autoimposto na então Colônia do Brasil, onde a “longa manus” inquisitória só tenuemente se fazia sentir. No novo rincão, muitos retomariam a prática da fé ancestral, assumindo um risco que, de qualquer modo, era infinitamente menos palpável que na metrópole. Posteriormente, com as incursões neerlandesas no Nordeste brasileiro, instaurou-se mesmo um clima geral de tolerância religiosa, o que fomentou não apenas o retorno dos cripto-judeus ao credo israelita, mas também a imigração daqueles que haviam objetado pela conversão forçada, desterrando-se em outras paragens. Neste diapasão, foi fundada em Recife a Sinagoga Kahal Zur Israel, com o intuito de servir de lugar de culto à vibrante comunidade judaica que se desenvolvia na cidade.
O termo da Guerra dos Guararapes, que implicou na retirada das tropas neerlandesas do território brasileiro, no entanto, representou o fim da política de liberdade religiosa que havia se desenvolvido, levando a uma imigração em massa dos judeus remanescentes. Todavia, muitos optaram por ficar na então colônia portuguesa, refugiando-se, sobretudo, na árida região sertaneja, onde a marcha colonizadora se arrastava timidamente. Neste ambiente quase inóspito, não poucos se sentiram livres outra vez para praticar o credo tão meticulosamente perseguido, embora, neste ponto, muitas das tradições judaicas já se haviam perdido.
A partir de então, as condenações inquisitoriais por “atividade judaizante” se tornaram paulatinamente menos comuns, ao ponto que, ao momento da última visitação da Inquisição no Brasil, em 1763, nenhuma denúncia digna de nota foi ferta neste sentido. Findara, assim, a agressiva persecução oficial aos judeus, que durante os dois primeiros séculos da colonização havia levado inúmeros aos tribunais portugueses e às fogueiras de Lisboa. A partir deste ponto, nenhum novo relato de culto judaico foi feito em território brasileiro, e, ao que tudo indicava, a conversão forçada havia, finalmente, impregnado a alma dos antigos israelitas, tornando-os cristãos convictos. Isto era, ao menos, os que criam as autoridades de então.
A partir de 1970, todavia, relatos da prática furtiva de antigos ritos mosaicos começaram a vir à tona, e muitos dos que vindicavam a preservação destes costumes começaram a professar aspectos do judaísmo normativo, almejando poderem retornar à fé que havia sido suprimida de seus antepassados. A pretensão, no entanto, esbarra com a resistência de certos setores da ortodoxia judaica, não sendo, igualmente, reconhecida como legítima pelo Estado de Israel, o que tem tradicionalmente dificultado a aquisição da cidadania em face da lei de retorno, vigente naquele país. Com efeito, passaremos a um breve análise de algumas destas comunidades autodenominadas marranas, salientando suas pretensões frente aos demais membros da comunidade israelita, enfocando, além disso, os mecanismo existentes para o seu reconhecimento enquanto cidadãos de Israel.
1 Os marranos no Nordeste de hoje
1.1 O caso de Venha-Ver
Os habitantes da pequena cidade potiguar de Venha-Ver são, em regra, católicos devotos, embora muitos deles preservem tradições que, segundo Cukierkorn (1998, p. 103), derivam de antigas práticas judaicas, forçadas à clandestinidade pelos séculos de perseguição religiosa a que esteve submetido o povo judeu em terras lusas e brasileiras! Quando interrogados acerca dos seus hábitos distintivos, no entanto, estes venha-verenses afirmam não saberem a explicação para o comportamento, ou, de outro modo, tentam-lhes atribuir uma origem cristã, refletindo certa perda da consciência étnica. Muitos frequentam a igreja com certa assiduidade, embora recusem a se ajoelhar durante o erguimento da eucaristia; todos sabem – e efetivamente recitam – as orações católicas principais.
Segundo dados historiográficos angariados pelo IBGE, o município de Venha-Ver teve como pioneiros os membros de duas famílias, uma das quais de ascendência cristâ-nova. A designação da localidade dataria desta época, sendo supostamente oriunda da justaposição e posterior corruptela do vocábulo português “vem” e do termo hebraico “chaver”, correspondente a companheiro. “Vem, chaver” se traduziria, portanto, num chamado a todos os criptos-judeus (como são designados os judeus que, tendo sido forçadamente batizados, continuavam a realizar ritos judaicos em segredo), para que afluíssem à remota localidade, onde poderiam praticar a fé judaica sem serem molestados (CUKIERKORN, 1998, p. 103).
As práticas reminiscentes de rituais judaicos podem ser percebidas em diversos âmbitos da vida cotidiana da comunidade de Venha-Ver. No que tange à alimentação, certos estudiosos encontram paralelo entre o costume de evitar a carne de porco e as práticas kosher praticadas pelos judeus, o que também se aplica ao tabu de mesclar, numa mesma refeição, carne e produtos lácteos, prevalentes naquele grupo. Mesmo a matança de animais, realizada com uma faca afiada, que permita o escorrimento de todo o sangue, é tido como residual do método de abate corrente entre os judeus praticantes.
As semelhanças prosseguem em práticas religiosas sem paralelo na ritualística cristã. Às sextas-feiras, alguns instantes antes do crepúsculo, muitas das mulheres de Venha-Ver acendem velas, deixando-as arder até o fim, protegidas da visão de forasteiros. Questionadas sobre o significado do rito, a explicação oferecida é a de que as velas seriam oferecidas aos bons espíritos, para que protegessem a casa e seus moradores. Pesquisadores há, todavia, que interpretam o hábito como reminiscente do ritual judaico do Shabbat, havendo sido externamente ressignificado, a fim de que seus praticantes se esquivassem das medidas repressoras outrora direcionadas aos cristãos-novos, como eram conhecidos os descendentes de judeus portugueses compulsoriamente convertidos ao catolicismo durante o reinado do rei D. Manuel I. Do mesmo modo, aponta-se o fato de os venha-verenses recusarem-se a comer pão durante a primeira semana de abril, em clara semelhança à prática judaica durante o a festa do Pessach.
1 Embora famosa por sua alegada ascendência judaica, poucos trabalhos de rigor científico se dedicaram à comunidade de Venha-Ver. A obra de Jacques Cukiekorn pode ser considerada a mais detalhada, em virtude da convivência do autor entre os habitantes da cidade, não obstante ele próprio afirme ter tido conhecimento prévio dos hábitos distintivos daquela gente. Posteriormente, repórteres da Agência Folha viajaram ao município a fim de investigar as práticas judaicas residuais de parte dos seus habitantes, havendo relatado várias delas, ainda que de forma menos minuciosa (LIMA, 1999).
Nas casas da comunidade são comuns os quadros de santo, não obstante sejam raras as cruzes. São igualmente escassas as cruzes sobre as lápides (CUKIERKORN, 1998, p. 106), fato que os diferencia sobremaneira de seus vizinhos católicos, cujas campas são invariavelmente marcadas pelo símbolo cristão. A ausência generalizada do distintivo máximo da fé católica, diga-se de passagem, pode ter como origem a aversão de muitos cristãos-novos pela cruz, símbolo da religião que lhes foi violentamente imposta. Neste particular, Niskier (2006) afirma ter sido comum que criptos-judias cosessem crucifixos na barra de suas saias, e, ao andar, proferissem mentalmente frases de repúdio ao cristianismo.
A ritualística da morte, prossegue Cukierkorn (1998, p. 105), apresenta particularidades que não podem ser explicados senão por sua origem remotamente judaica. Após o falecimento de um dos membros da comunidade, os venha-verenses, tão logo quanto possível, banham o cadáver, ocasião em que também suas unhas são cortadas, sendo, após, recoberto em uma mortalha branca. Por ocasião do sepultamento, em oposição à prática corrente entre os demais católicos da região, os defuntos de Venha Ver são colocados em covas profundas, sem caixões, unicamente cobertos pela longa veste. A campa, após o enterro, é marcada por uma lápide, sobre a qual cada um dos parentes deposita um pequeno seixo, demonstrando que não esquecerá o parente falecido”.
O sistema ritual descrito por Cukiekorn apresenta incrível semelhança com aspectos chave da religiosidade judaica, embora, por vezes, deturpado após séculos de prática clandestina. São, do mesmo modo, coerentes com as práticas cripto-judaicas coloniais, mesmo em sua tendência sincrética e ressignificada, conforme relatada por Niskier (2006). No entanto, contrariamente a comunidades paradigmáticas de descendentes de cristãos-novos em Portugal (das quais se cita a dos marranos de Belmonte, de que se falará oportunamente), os habitantes de Venha-Ver parecem não ter preservado a identidade étnica judaica, não reconhecendo, pois, a origem de seus hábitos.
3LIMA, A, de. Cidade do RN preserva tradição judaica: A pequena Venha-Ver, fundada em 1811 por cristãos-novos, guarda vestígios de sua origem judaica. 1999. Disponível em <http://wwwl folhauol.com.br/fsp/cotidian/ff25079918.htm >. Acesso em 20 jan. 2017.
1.2 Cidades de retornados e conversos: comunidades marranas nas grandes cidades nordestinas
Para além da comunidade de origem alegadamente marrana de Venha-Ver, diversos outros grupos, concentrados, sobretudo, nas capitais dos estados do Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, têm vindicado ancestralidade cristã-nova, a qual, segundo relatam, seria corroborada por tradições familiares distintivas, semelhantes aquelas praticadas pelos venha-verenses. Mais que isso, alguns desses grupos têm adotado a fé judaica oficial, voltando, pois, ao credo violentamente suprimido e forçado à clandestinidade há vários séculos.
Às origens remotas da busca pela ancestralidade marrana no Nordeste brasileiro conduzem ao tenente Abdon Nunes de Carvalho, famoso oficial mossoroense que, havendo abraçado determinados aspectos da ritualística judaica, realizou a circuncisão de seu filho então recém-nascido, José Nunes Cabral de Carvalho, em idos de 1913 (SILVA, 2008, p. 7). Este último, por seu turno, torna-se especialmente interessado na catalogação e salvaguarda de aspectos da cultura sertaneja cujas origens pudessem ser traçadas até hábitos judeus, tendo, em virtude disto, percorrido diversos sítios e fazendas do Seridó potiguar, realizando entrevistas com antigos moradores da região e coletando evidências que corroborassem suas asserções.
Carvalho foi um dos pioneiros na criação de sociedades onde os marranos pudessem congregar, havendo empreendido, a partir de meados da década de 1970, um dedicado trabalho de divulgação de suas pesquisas etnográficas sobre as tradições potiguares de origem cripto-judaica. Neste período, o Centro Israelita Norte-rio-grandense (CIRN) — fundado por membros da comunidade judaica asquenazita de Natal e reaberto por Carvalho anos após sua desativação – começa a receber um fluxo tímido, porém constante, de indivíduos desejosos de “retornar” à prática do judaísmo normativo, por reconhecerem em suas próprias tradições familiares supostas reminiscências de costumes cristãos-novos.
Deve-se ressaltar, neste ponto, que a própria preferência demonstrada pelos marranos nordestinos pelos termos “retornar” e “retorno”, em detrimento de “conversão”, revela suas pretensões frente à comunidade judaica normativa. No entender daqueles, os bnei anussim, grupo de que fazem parte, seriam judeus de pleno direito, não obstante suas práticas religiosas tenham sido erodidas em virtude da conversão forçada a que foram submetidos seus ancestrais remotos. Neste diapasão, não haveria por que se falar em conversões, senão em meros atos homologatórios de um estado pré-existente, o que, em termos rabínicos, pode ser expresso pela dicotomia giyur-teshuvá, respectivamente.
Ansiosos para legalizar a sua situação perante a lei judaica, os descendentes de marranos chamam a sua volta ao judaísmo de “retorno” e não de “conversão”, uma vez que a sua condição atual deve-se ao batismo forçado, imposto aos seus antepassados.
A cerimônia de reinauguração do CIRN, realizada em março de 1979, contou com 17 expectadores, dentre os quais alguns autodenominados marranos, que seriam posteriormente orientados sobre o procedimento de retorno. Sua diretoria congregava, a um só tempo, judeus classificados como tal pela tradição rabínica e os marranos potiguares, ou, na expressão de Wolff (1984), os “Judeus-novos”.
A convivência harmoniosa entre ambos os grupos natalenses, deve-se dizer, parecer ter causado forte impressão em rabinos forasteiros, que se estupefaziam pelo fato de indivíduos com identidade judaica contestada e incerta participarem de cerimônias religiosas ao lado de judeus sobre cujo estado étnico e religioso não pairavam quaisquer dúvidas (SILVA, 2008, 13). Neste particular, insta esclarecer que nível de integração entre as comunidades era tal que muitos dos autoproclamados marranos haviam sido sepultados no cemitério judaico da cidade, havendo mesmo se designado um deles para exercer a função de rabino para a sinagoga local em 2006.
De modo análogo, desenvolveu-se no Recife uma vibrante comunidade autodenominada marrana, cuja relação com os grupos judeus normativos, entretanto, apresenta contornos mais diversificados do que o clima geral de aceitação constatado na capital potiguar. Não obstante isso, também na metrópole pernambucana indivíduos cujo patronímico* ou tradições familiares indicavam uma suposta ancestralidade cristã-nova obtiveram espaços onde sua identidade emergente pudesse ser expressa, havendo mesmo angariado a simpatia de membros da comunidade judaica em sentido estrito, que aceitaram servir-lhes de líderes. Podem-se citar, por oportuno, as atividades desenvolvidas por Isaac Essoudry, judeu de origem marroquina que em 2005 transformou em sinonagoga o apartamento onde residia, prestando, com isso, importante auxílio aqueles desejosos por “retornar” à fé que, presuntivamente, professavam seus ancestrais remotos.
O espaço exsurge como a única sinagoga recifense a autodefinir-se sefardita, em sintonia, pois, com a tradição ritual judaica praticada em solo brasileiro durante os anos da dominação holandesa, ocasião em que cripto-judeus e outros praticantes da lei mosaica gozaram de relativa liberdade de culto. O desígnio de Essoudry em congregar indistintamente judeus e “Judeus-novos”, no entanto, encontra pouco respaldo nas demais congregações judaicas recifenses, aduzindo Brito (2014, p. 133) que “diante das resistências encontradas por muitos anussim em serem aceitos como judeus, a postura de Isaac Essoudry não só se revela para eles como uma exceção, mas quase como uma prova de altruísmo”.
No entanto, o “apostolado” do rabino Essoudry, embora relevante, não pode ser considerado o elemento de propulsão originária do marranismo na cidade do Recife, senão mero aglutinador de um movimento que o pré-data em muitos anos. Pode-se, com efeito, definir a década de 1970 como marco inicial do fluxo de indivíduos que, reivindicando a ancestralidade cristã-nova, buscavam serem aceitos como membros de pleno direito da comunidade judaica. Como representante deste grupo de pioneiros cita-se Odmar Pinheiro Braga, recifense que se destaca pela composição de poemas em ladino, a língua ancestral de parcelas considerável dos judeus sefarditas”.
4 A utilização dos patronímicos para averiguação da suposta ancestralidade judaica de um indivíduo, não obstante, na dicção de Taumaturgo Silva (2007, p. 51), seja recorrente entre os grupos autodenominados marranos, goza de pouca corroboração historiográfica.
Neste particular, o desígnio demonstrado pelos anussim da capital pernambucana em resgatar suas presuntivas raízes cristãs novas acompanha, em igual proporção, o desejo de fomentar e salvaguardar as práticas ritualísticas sefarditas, grupo do qual, segundo aduzem, fariam parte seus antepassados remotos. Com isso, o número dos autodeclarados sefardim, que anteriormente a 1970 constituíam uma exígua parcela da comunidade judaica recifense, tem experimentado um crescimento exponencial, propelido pelo contínuo fluxo de novos membros marranos. A tendência, seja dito de passagem, tomou contornos tão dramáticos que, naquela cidade, a dicotomia entre “Judeus-novos” e judeus pertencentes a comunidades judaicas normativas pode ser expressa, com admirável justeza, pela oposição entre sefardita e asquenazita.
Agrupamentos de autodenominados marranos têm se desenvolvido em outras capitais e cidades nordestinas, apresentando dinâmicas similares às de Recife e Natal, respeitadas um pequeno número de peculiaridades locais. Em Campina Grande, situada no agreste pernambucano, a historiadora Anita Novisnky relata a existência de um grupo que reclama descender de antigos criptos-judeus da região, tendo como expoente a historiadora Lourdes Ramalho (NOVINSKY, 2012, p. 471). Lá, no entanto, o número de judeus advindos de comunidades acordes à tradição rabínica é numericamente insignificante, não se visualizando, em âmbito local, a dicotomia judeu-“judeu-novo” verificada na metrópole pernambucana.
A situação se repete em Caicó, importante cidade do centro-sul potiguar que, segundo Mellet (1986 apud NOVINSKY e KUPERMAN, 1996) teria sido um dos pontos nucleares da presença cripto-judaica em território brasileiro. A crença na ancestralidade cristã-nova, deve-se dizer, constitui um aspectos chave para construção identitária da população caicoense, bem como, de modo mais amplo, dos habitantes do Seridó, região geográfico-cultural em que estaria inserta aquele município. Como exemplar desta tendência, pode-se citar o caso do pároco caicoense Antenor Salviano de Araújo, o qual, em correspondência com a historiadora Anita Novinsky, apresentou-se como judeu da diáspora, afirmando que sua paróquia seria composta, sobretudo, de descendentes de judeus homiziados no período colonial.
* MUCHNIK, N. La condition marrane : un fait social total à Pépreuve de la longue durée. In: WATCHEL, N. Histoire et anthropologie. Les actes. 15 nov. 2016. Disponível em <http://actesbranly.revues.org/724>. Acesso em 07 mar. 2017.
Embora sentido em todo o nordeste, o movimento de resgate das raízes matranas, com conseguente adoção de uma vida judaica comunitária, é preponderante nos estados de Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. A dimensão numérica desses grupos, no entanto, é dificil de ser precisada, máxime em virtude de sua extrema heterogeneidade. Em cada caso, diferentes conjuntos de costumes familiares são interpretados como indicativos de uma ancestralidade judaica, não sendo corriqueiro que dois indivíduos de linhagens diversas relatem hábitos precisamente iguais como preponderantes para a sua identidade. Agrupamentos marranos, ademais, representam um ínfimo percentual da população nas regiões em que residem, o que lhes confere pouca visibilidade fora do meio judaico.
Mesmo em Natal, cuja comunidade bnei anussim encontrava-se, já em 1982, relativamente bem documentada, Ramagem (1982) só pôde estabelecer, grosso modo, a estimativa de oito famílias marranas, sendo somente contabilizadas as que frequentavam cultos no CIRN, sendo razoável imaginar que esta cifra tenha se alterado a partir de então. Em Recife, igualmente, as pesquisas sobre o tema têm se concentrado na identificação dos elementos culturais definidores do ser marrano, em detrimento de uma abordagem comunitária do assunto, o que se repete nas pesquisas de campo realizadas em outras cidades do nordeste brasileiro.
Malgrado sua extrema heterogeneidade, parcialmente encoberta sob a designação compartilhada, pontos há que unem as comunidades matrranas, vinculando-as a objetivos comuns. Sob o aspecto religioso, como já extensamente aduzido, verifica-se a vontade corrente e expressa de serem aceitas no âmbito do judaísmo normativo, salvo raras objeções individuais. Em decorrência destas aspirações de natureza eminentemente mística, contudo, exsurgem interesses seculares, tornados manifestos através do entusiasmo sionista demonstrado por boa parte daqueles bnei anussim, para os quais o Estado de Israel seria o fim último em seus esforços pelo resgate das raízes judaicas familiares. Todavia, o desejo de “retorno” destes indivíduos a sua “pátria israelense” perpassa diversas considerações, sobretudo no que se refere à definição de judeu para a lei israelense de retorno, bem como aos múltiplos aspectos concernentes ao procedimento de conversão ao judaísmo, os quais passaremos a analisar.
2 Entre a Halachá e atos do Knesset: quem é judeu”?
Embora tenha tido, a princípio, caráter essencialmente religioso, a definição dos elementos constituintes da identidade judaica apresenta, hodiernamente, importantes desdobramentos políticos. A criação do Estado de Israel, definido em suas Leis Básicas como judeu e democrático, representou o ápice da politização do ser judeu, passando a indicar de maneira mais ou menos objetiva aqueles elegíveis a imigrar para a pátria judia como oleh. A aferição dos laços que ligam um determinado indivíduo à comunidade judaica internacional, no entanto, nem sempre são nítidos, o que, não raro, irrompe em problemas de intrincada solução.
Parte da problemática sobre a definição de judaísmo reside na multiplicidade de seus critérios definidores. Se, por um lado, a religiosidade exsurge como um dos principais fatores de aglutinação dos judeus entre si, por outro, e em igual medida, a crença na ancestralidade comum (bem como no histórico comum de perseguições) desempenha importante papel na construção da narrativa identitária judaica, o que confere ao conceito uma faceta mais secular. Assim, e de modo a facilitar a exposição didática do assunto, trataremos separadamente as duas maneiras pelas quais um indivíduo pode ser reconhecido como judeu pelos seus pares: mediante a ancestralidade ou através da prática religiosa (sintetizada pela conversão).
2.1 A identidade judaica enquanto categoria secular
De acordo com a Halachá, como é conhecido o corpo de leis religiosas judaicas, é judeu todo aquele nascido de mãe judia ou que, de outro modo, abraçou a fé mosaica e submeteu-se a um complexo procedimento de conversão. Este último caso, ao que pese o posicionamento contrário de vertentes religiosas mais liberais, deve aplicar-se mesmo aos filhos de pais judeus e mães não-judias que desejem prosseguir inteiramente insertos na comunidade religiosa de que fazem parte seus progenitores, pouco importando se hajam sido ou não criados imersos na cultura judaica ou de seu nível de conhecimento sobre a ritualística daquele credo.
Não obstante isto, a Lei do Retorno, que concede a qualquer indivíduo judeu o direito de imigrar e ter conferida a cidadania israelense, propõe um entendimento mais amplo sobre a identidade judaica – não obstante mantenha certa semelhança com a tradição rabínica que a precede – esposando o entendimento de que povo judeu constitui, antes de tudo, uma comunidade étnica umbilicalmente relacionada à fé mosaica. Promulgada em 5 de julho de 1950, pouco mais de dois anos, portanto, após a declaração israelense de independência, o diploma encontra-se imbuído da vocação laica que impulsionou os idealizadores do estado sionista, havendo sido engendrado com o escopo atrair à pátria ancestral todos os judeus vivendo na diáspora, independentemente de seu nível de prática religiosa.
A definição de pertença ao povo judeu, desta forma, consolidou-se como um conceito polissêmico, apresentando, de uma banda, uma faceta religiosa, plenamente adstrita aos costumes rabínicos, e, de outra, uma dimensão legal, positivada, integrando o eixo de sustentação do estado israelense e decorrente, sob determinada ótica, daquela primeira acepção, embora a ela não inteiramente vinculada. Sintetizando a multidimensionalidade do tema, bem com as implicações fática de cada uma das definições, Rabinowitz (1997, p. 283) aduz que:
“The need to define Jewish identity was required for three purposes: (1) for marriage or divorce,(2) for the population registry, and (3) to identify those who were entitled for the benefits of the Law of Return. The determination of Jewish identity for purposes of marriage or divorce and other aspects of personal status, was based on Turkish-Mandatory precedent and was assigned to the official rabbinate. The other two definition, […] was seculars.”
Entretanto, não obstante o entendimento de que a aferição da identidade judaica para fins de imigração sionista deveria se guiar por critérios objetivos e tão seculares quanto possível, a falta de definições precisas sobre a categoria mostrou-se responsável por relevante insegurança jurídica. A lacuna foi somente preenchida, ainda que parcialmente, após a segunda emenda à lei, nos termos da qual se definiu judeu como “a person who was born of a Jewish mother or has become converted to Judaism […]”, em sintonia, pois, com as definições tradicionais de pertença ao povo judeu. A alteração mais profunda, todavia, foi representada pela inclusão da alínea “a no artigo 4º da lei original, a qual estabelecia que:
“The rights of a Jew under this Law and the rights of an oleh under the Nationality Law, 5712-1952, as well as the rights of an oleh under any other enactment, are also vested in a child and a grandchild of a Jew, the spouse of a Jew, the spouse of a child of a Jew and the spouse of a grandchild of a Jew, except for a person who has been a Jew and has voluntarily changed his religion.”
[A necessidade de definir a identidade judaica era requerida para três propósitos: (1) para casamentos e divórcios, (2) para o registro populacional, e (3) para identificar aqueles que estivessem aptos a requerer os benefícios da Lei de Retorno. A determinação da identidade judia para fins de casamento ou divórcio, bem como outros aspectos do estado pessoa, era baseado no precedente Turco-Mandatário e foi conferida ao rabinato oficial. As outras duas definições eram seculares.] (tradução livre).
A discriminação minuciosa das hipóteses para as quais se concediam o direito de retorno (incluindo-se, então, indivíduos não-judeus segundo a tradição rabínica) deve-se, parcialmente, às demonstrações antissemitas propelidas pelo governo polonês em fins da década de 1960, que teve como alvo a população judia altamente assimilada da Polônia de então. Durante o episódio, milhares de indivíduos foram privados da nacionalidade polonesa em virtude de sua identidade judaica, mesmo que muitos, nos termos da halachá, não fossem mais judeus. Desta forma, a Lei do Retorno, torna explícita a categorização do povo hebreu como grupo étnico (mesmo que parcialmente), entrando, assim também, em sintonia com os conceitos antissemitas do que é ser judeu, embora não abandonando a tradição matrilinear rabínica, que lhe serve de pano de fundo.
Autores há, no entanto, que vislumbram fatores subjacentes à ampliação das hipóteses contempladas pela Lei do Retorno, para além do desejo de fornecer refúgio às populações de origem judaica perseguidas. Segundo estes, a concessão de cidadania sob a referida lei a indivíduos não rigorosamente judeus do ponto de vista da tradição ortodoxa visaria a aumentar os níveis de imigração sionista, de modo a contrabalancear as altas taxas de fertilidade da população árabe israelense, as quais, conforme temor de parcelas da classe civil e política de Israel, comprometeriam a existência do “estado judeu e democrático” estabelecido nas Leis Básicas.
O “risco iminente” de derrocada demográfica é, frise-se, frequentemente apontado como principal elemento impulsionador de leis imigratórias israelenses cada vez mais permissivas, recebidas, não raro, sob protesto de setores judeus ortodoxos daquele país, para os quais definições de identidade judaica mais próximas da tradição haláchica seriam preferíveis. Neste particular, pode-se citar a recente decisão governamental de conceder a cidadania sob a Lei do Retorno àquele que, mediante exame de DNA, demonstrar ter marcadores genéticos específicos das comunidades judaicas, desde que a pertença ao povo judeu seja corroborada por outras evidências (MCGONIGLE E HERMAN, 2005). Com isto, abre-se caminho para a potencial imigração de indivíduos altamente assimilados, porém remotamente aparentados a judeus em senso estrito.
A importância conferida à ancestralidade para a aferição do “estado de judeu”, contudo, não obnubila a posição preponderante da fé judaica para efeitos da concessão de cidadania sob a Lei de Retomo. À adoção de outro credo, conforme se exara dos artigos 4A (a) e 4B do retromencionado diploma, tem, a princípio, o condão de impedir qualquer pretensão à aliyah, salvo quando a conversão se der de forma compulsória. Não por outro motivo, em caso paradigmático, a Suprema Corte Israelense decidiu pela não aplicabilidade do estado automático de cidadão a Oswald Rufeisen, o qual, não obstante nascido no seio de uma família judaica, optou voluntariamente pela conversão ao catolicismo (LANDAU, 1971, p.1).
No caso em que a mudança de credo envolve indivíduos filhos de pais ou avós judeus, e, pois, não judeus na senda da halacha, todavia, a hipótese reveste-se de novas variantes. Havendo decido, em 1989, que os judeus messiânicos constituíam grupo religioso diverso do judaico, não podendo imigrar para Israel como 9%, a Suprema Corte daquele país emitiu acórdão em 2009 no qual se estabelecia que, embora judeu messiânico, o requerente poderia realizar a aliyah, uma vez que seu pai e avô haviam sido judeus em senso estrito”.
Naquele mesmo ano, contrariamente, a pretensão de um requerente a realizar a aliyah foi rejeitada em última instância pela Corte Israelense, havendo esta aduzido que, no caso em espeque, seu pai e avô haviam abertamente adotado o judaismo messiânico sendo ele, pois, impedido de fazer uso da Lei do Retorno em virtude da cláusula de conversão. Reforça-se, deste modo, a profunda simbiose existente entre pertença étnica e religiosidade para a determinação da identidade judaica, mesmo que esta correlação demonstre, por vezes, múltiplos e contraditórios aspectos.
CNAAN, L. Messianic Jews petition High Court to immigrate under Law of Return. 15 mai. 2009. Disponível em <http://www.haaretz.com/messianic-jews-petition-high-court-to-immigrate-under-law-of-return-1.276099>. Acesso em 12 mai. 2017.
Mesmo que pesquisas recentes apontem uma taxa de fertilidade substancialmente superior Aquela necessária para a manutenção populacional entre as judias israelenses não-haredi, o temor da sobreposição numérica da população árabe em relação à judaica para se manter.
Se a conversão a outros credos de indivíduos anteriormente identificados com a fé judaica funciona como cláusula de barreira à utilização dos direitos inerentes à Lei de Retorno, o contrário, ou seja, a conversão de gentios ao judaísmo, tem o condão de propiciá-los. Como já mencionado alhures, o próprio diploma israelense refere-se aos conversos como judeus de pleno direito, ao lado daqueles nascidos de ventre judaico, em sintonia, pois, com o disposto na tradição rabínica. A lei, no entanto, permaneceu lacunosa quanto aos aspectos procedimentais da conversão, fato que está no cerne de importantes controvérsias jurídicas, como se passa a demonstrar.
2.2 Judaismo, judaísmos: a querela religiosa sobre as conversões e seus desdobramentos jurídicos
A compreensão das divergências que fornecem combustível à “querela das conversões” deve partir da premissa de que o judaísmo moderno não é uma religião monolítica, senão um complexo sistema de tradições, rituais e linhas de pensamento discordes, unidos pela noção de origem comum. Em virtude disto, o procedimento de conversão realizado perante uma dada denominação judaica não necessariamente será reconhecido como válida por outra, e mesmo rabinos específicos podem apresentar objeções à ritualística utilizada por seus pares de uma mesma corrente.
Diferentemente de outros credos abraânicos, tais como o cristianismo e o islamismo, a fé judaica apresenta-se como não proselítista, não se engajando, pois, em atividades missionárias que visem a cooptar novos seguidores à prática de seus ritos. Inobstante isso, as conversões são possíveis, embora invariavelmente extensas e árduas, devendo o rabino que a conduzir, se ortodoxo, empreender todo o possível para dissuadir o requerente de seu intento. As correntes judaicas reformistas e conservadoras, contudo, apresentam procedimentos conversórios simplificados, praticados com observância variada da halachá, embora em todos os casos o pretenso judeu deve comparecer a um Ber Din, tribunal rabínico tríplice que avaliará a legitimidade de sua fé.
Ademais, a segunda emenda à Lei Israelense do Retorno, conquanto haja tornado explícito o conteúdo de importantes categorias legais, furtou-se de estabelecer o modo pelo qual se deveriam processar os rituais de conversão a fim de gerarem efeitos na seara jurídica, havendo aduzido, unicamente, ser judeu aquele “nascido de mãe Judia ou que tenha se convertido ao Judaísmo”. A redação lacônica do dispositivo, nos dizeres de Rabinowitz, foi proposital, engendrada de modo a eximir os membros do legislativo de deliberarem acerca de um tópico que, fatalmente, suscitaria importantes controvérsias.
Neste sentido, mesmo a inserção do determinante “de acordo com a halacha” após a partícula “convertido ao judaísmo”, conforme proposto por boa parte dos partidos ortodoxos israelenses e presente no texto original da alínea, foi rechaçada, graças, em grande medida, ao entendimento da então primeira-ministra Golda Meir de que o monopólio ortodoxo sobre a religião, embora prevalente em Israel, não deveria ser estendido aos judeus vivendo na diáspora.
Desta forma, ante a pouca disposição demonstrada pelos membros do Knesset em se imiscuir na contenda rabínica em que se havia transformado o processo de conversão, tornou-se claro que a problemática terminaria por, fatalmente, ser decidida pelo Poder Judiciário.
Em 1989, com efeito, a Suprema Corte Israelense estabeleceu que as conversões realizadas em comunidades judaicas da diáspora deveriam ser aceitas para fins de aplicação da Lei do Retorno, pouco importando a corrente religiosa do rabino que a tenha realizado, se ortodoxa, reformista ou liberal. O acórdão paradigmático, não obstante tenha vindo a desempenhar importante função integradora da legislação, permaneceu silente quanto às conversões realizadas no interior do Estado de Israel, onde, deve-se dizer, a influência das congregações judaicas não-ortodoxas era tênue, e o Rabinato Chefe exercia concreta influência sobre os assuntos religiosos.
O precedente fixado pela Suprema Corte foi acatado com ojeriza pelos partidos políticos de inclinação ortodoxa e ultra-ortodoxa, os quais, visando a subverter seus efeitos, esboçaram projeto de lei que conferia ao Rabinato Chefe, de inconfundível orientação ortodoxa, a autoridade final sobre as conversões, quer houvessem sido realizadas no exterior, quer nos limites territoriais israelense. A proposta legislativa, todavia, despertou a ira de autoridades judaicas liberais e reformistas da diáspora, que ameaçaram romper relações com Israel caso o instrumento normativo entrasse em vigor.
Em resposta à profunda crise institucional que ameaçava se instalar, e que punha em confronto, de um lado, as comunidades judaicas estrangeiras e, de outro, as autoridades religiosas israelenses, o governo de Israel propôs a instalação de uma comissão interdenominacional, objetivando a consecução de um consenso sobre o tema. O comitê Ne’eman, como ficou conhecido, congregou representantes das principais vertentes do judaismo internacional e foi recebido com entusiasmo pela classe política israelense, fortalecendo as esperanças de que o estado de insegurança jurídica subjacente ao tópico das conversões pudesse ser solucionado através de um entendimento final.
A despeito das altas expectativas depositadas no grupo, os resultados obtidos após várias rodadas de discussões foram irrisórios, redundando numa única decisão que, não obstante apócrifa, foi aprovada pelo Knesset. Havendo, pois, restado evidente que qualquer espera por consenso seria vã, a Corte Suprema daquele país retomou a análise dos casos relativos à concessão de cidadania a conversos, que havia sido interrompida após a instalação daquele comitê. Deve-se ressaltar, por oportuno, que os anos que se seguiram foram extremamente prolíficos em decisões sobre o tópico, muitas das quais se tornaram paradigmáticas para casos posteriores.
Cita-se, neste particular, significativo acórdão prolatado em 31 de março de 2005, que ampliou o entendimento esposado no precedente de 1989. Por sete votos a quatro, os membros da Suprema Corte determinaram o dever de reconhecimento estatal das conversões não-ortodoxas celebradas no exterior, mesmo que os estudos necessários à cerimônia fossem realizados em território israelense. No caso em comento, o Ministro do Interior negara a naturalização de quinze indivíduos conversos, sob o argumento de que não estariam plenamente integrados nas comunidades em que se haviam processado seus estudos para conversão.
Não obstante o primado ortodoxo sob as conversões o interior do estado israelense reste, em seus aspectos centrais, inalterado, julgados recentes da Suprema Corte têm vindo pô-lo em xeque. Em meados de maio de 2016, o tribunal decidiu que as conversões ortodoxas realizadas em território israelense, ainda que conduzidas por rabinos não vinculados ao Rabinato Central, deveriam ser reconhecidas pelo governo para fins de concessão de cidadania sob a Lei do Retorno.
Deste modo, novas nuances da problemática emergem, ao passo em que se restringe a influência dos órgãos rabínicos oficiais em questões eminentemente civis, como a imigração.
Frise-se, por oportuno, que as decisões exaradas pela Corte Máxima tiveram como efeito a colmatação de várias das lacunas deixadas pela inércia legislativa em regular o tema das conversões. A insegurança jurídica, que até então assoberbava os juízes com casos de difícil deslinde, torna-se cada vez menos acentuada, havendo sido paulatinamente tolhida por sucessivos precedentes judiciais a que a sistemática israelense atribuía efeito vinculante. Neste particular, destaca-se o papel do próprio aparato jurídico daquele país, que, tendo se originado do sistema de common law implantado durante o mandato britânico na Palestina, atribui aos juízos significativo encargo de produção normativa.
A fixação de critérios cada vez mais dúcteis para as conversões, propiciados, em boa medida, pela atividade jurisdicional, imprime novo ânimo às comunidades judaicas não reconhecidas pelo estado israelense. Neste contexto, grupos fracamente ligados ao judaísmo internacional, tais como os marranos da região nordeste do Brasil, vêem sua pretensão de retorno à fé que supostamente praticaram seus ancestrais cada vez mais próxima da concretização. Para além das perspectivas futuras, vários instrumentos jurídicos podem ser atualmente utilizados pelos indivíduos que queiram ter concedida sua cidadania israelense em face da Lei do Retorno, como se passa a demonstrar.
3 A aliyah dos marranos nordestinos: atualidades e prospectos
Conforme anteriormente mencionado, os marranos nordestinos perfazem uma categoria incrivelmente heterogênea, fracamente aglutinada pela pretensão comum de reconhecimento de sua identidade judaica. Os modos pelos quais cada indivíduo a tenciona ver aceita, no entanto variam imensamente, estando fortemente relacionadas a ponderações de caráter espiritual e subjetivo, pelo que qualquer análise totalizante deste aspecto está fadada ao fracasso. Todavia, para fins da presente análise, apresentar-se-ão as principais estratégias utilizadas ou argúidas por estas comunidades a fim de obter a recognição de sua prática judaica (as quais, em geral, prezam pelo reconhecimento coletivo, em detrimento de estratégias individuais), contrastando-as com experiências similares de outras comunidades espalhadas pelo mundo.
Importante parcela dos autodenominados marranos consideram a si próprios como judeus de pleno direito, sustentando serem descendentes de famílias que, havendo mantido um alto grau endogamia, lograram êxito em preservar sua identidade judaica. Em virtude disto, conforme anteriormente narrado, não haveria por que se empreender sua conversão ao judaísmo, defendendo-se a realização de cerimônia de retorno à fé ancestral longamente esquecida”.
Destaca-se, por oportuno, que a preferência por um dos ritos em detrimento do outro se apóia em razões de cunho eminentemente subjetivo, uma vez que há poucas distinções entre ambos para fins de concessão de cidadania israelense em face da lei do retorno.
2 O desejo de boa parcela dos marranos nordestinos pelo retorno em detrimento da conversão encontra-se amplamente documentado na obra cinematográfica “A estrela oculta do Sertão”, cujo enredo centra-se na busca de Luciano de Oliveira, autodenominado marrano, pelo reconhecimento de suas raízes judaicas.
A pretensão de retornar à fé, contudo, enfrenta significativa oposição de rabinos da comunidade ortodoxa, para quem os matrranos seriam integralmente alheios ao judaísmo, por carecerem de axiomática comprovação da matrilinearidade, nos termos da halachá. Neste diapasão, as tradições domésticas apresentadas pelos anussim, embora não tenham sua origem judaica terminantemente rechaçada – o que, de qualquer modo, iria de encontro com as extensas evidências apresentadas por autores de vulto, tais como Cascudo (2015) -, não são consideradas suficientes para, per se, conferir-lhes o estatuto de judeus. Como representativo desta tendência, Ramagem (1983, p. 85) apresenta o caso de um rabino ortodoxo que empreendeu visita à comunidade marrana de Natal, tendo, após, relatado que:
“Não ficamos impressionados que a coisa tenha qualquer origem… até se fosse, se há trezentos anos atrás houve qualquer ligação com o judaísmo, mas nesses anos já houve tantos casos de casamentos no meio, com certeza, que não se pode nem mais saber quem era mais judeu (…) morar naqueles arredores não tinha qualquer condição de manter nosso esquema de vida (…)”
Como contraponto ao ceticismo rabínico, os pretensos retornados ao judaísmo apresentam casos de comunidades cripto-judaicas reconhecidas como autênticas por rabinos de renome, estabelecendo paralelos entre aqueles precedentes e a própria conjuntura de seus grupos. Nesta esteira, o caso dos marranos de Belmonte é o mais comumente indicado como paradigma, devido, em certa medida, à ligação histórica existente entre os anussim de ambos os lados do Atlântico”, Belmonte, uma pequena aldeia portuguesa do distrito de Castelo Branco, tornou-se célebre após a descoberta de um grupo de indivíduos que, havendo sido forçados à clandestinidade pelo aparato repressivo da Inquisição, mantinham vivos rituais da fé judaica, numa continuidade histórica aparentemente inquebrada.
Os belmontenses de origem cristã-nova, os quais têm paulatinamente retomado a prática do judaísmo normativo, mantinham endogamia estrita, havendo sido raríssimos os casos de casamentos com indivíduos alheios à comunidade. Do mesmo modo, realizavam preces em que clamavam por Adonai, um dos nomes pelo qual é conhecido o deus judaico, além de tomarem o sábado como dia de guarda. As festividades do Páscoa e do Purim, ademais, eram igualmente cumpridas, havendo-se conservado fiéis as tradições judias, embora se tenham feito certas adaptações coerentes com a furtividade com que eram praticadas.
O indício externo mais veemente da origem judaica daqueles indivíduos, no entanto, era a própria designação que lhes era reservada: os belmontenses marranos reconheciam-se – e eram reconhecidos – como judeus, sendo alvo de forte discriminação local pelo credo que praticavam secretamente. Neste particular, cita-se o depoimento de Emilia Rodrigues, documentado na afamada produção cinematográfica Les Dermiers Marranes (1991), que relata as tradições mantidas pelas famílias cripto-judaicas remanescentes de Belmonte. Consoante ela, a consciência de sua identidade judaica lhe havia sido incutida tão logo começou a passear pelas ruas do vilarejo, uma vez que seus conterrâneos não-judeus frequentemente lhe apontavam o dedo e chamavam-na “Judia”.
1º Embora frequentemente citado pelos marranos brasileiros como um caso de retorno, parte dos belmontenses submeteu-se à cerimônia de conversão, ao passo que outra importante parcela seguiu com a prática de seus rituais cripto-judaicos.
Vislumbra-se, deste modo, o que pode ser apontada como a primeira diferença essencial entre os marranos belmontenses e seus correspondentes nordestinos. Fim terras brasileiras, a designação étnica não sobreviveu em nenhuma comunidade já analisada, e os que vindicam para si a ancestralidade cristã-nova fazem-no a partir de aspectos bem menos concretos, como tradições domésticas, localidade de origem da família ou patronímicos.
Outrossim, o sistema ritual mantido pelos marranos de Belmonte apresenta singular coerência, sendo quase idêntico à ritualistica de comunidades judaicas normativas espalhadas pelo mundo, embora simplificado pelos séculos de transmissão oral. Mesmo a convicção de não pertença ao cristianismo mostra-se incrivelmente forte entre os belmontenses de origem judia, sendo amplamente documentada, entre eles, a recitação de certos versos, ditos mentalmente ao entrarem em templos católicos, de modo a reafirmarem sua descrença nos dogmas propagados pela Igreja. Entre os autoproclamados anussim nordestinos, entretanto, relatam-se costumes familiares que só debilmente podem ser relacionados a práticas do judaísmo rabínico, os quais foram, além disso, legados às gerações seguintes de maneira mecânica, ausente a consciência de sua origem.
A despeito da reconhecida autenticidade e coesão dos ritos praticados pelos marranos de Belmonte, repisa-se que os indivíduos daquela comunidade que optaram por serem reconhecidos pela ortodoxia judaica se submeteram ao procedimento conversório, e não de retorno, como alegado pelos anussim brasileiros (Jewish Chronicle, 1995). Esta é, diga-se de passagem, a medida mais comumente empregada quando a matrilinearidade de um pretenso judeu não pode ser inquestionavelmente aferida, mesmo que fatos subjacentes indiquem uma forte ancestralidade judia. Em face disto, não há garantias de que o anseio dos “filhos de forçados” pelo retorno, especificamente, venha a se concretizar em data futura.
Os xuetas constituem um segundo caso apontado como modelar pelos marranos nordestinos, nos esforços pela recognição da legitimidade de sua prática judaica. Oriundos da província espanhola das Ilhas Baleares, sendo especialmente prevalentes na cidade de Palma de Maiorca, a origem daquela comunidade pode ser traçada até grupos de judeus forçadamente convertidos ao catolicismo em meados do século XV. Submetidos a intensa hostilidade social desde então, os xuetas mantiveram-se estritamente endogâmicos por boa parte de sua história, preservando a consciência de sua origem judia mesmo quando todo e qualquer traço das antigas tradições mosaicas já houvesse desaparecido.
Atualmente, Palma de Maiorca abriga uma sinagoga, onde congregam um pequeno número de xuetas que retomaram a prática do judaísmo. A virulenta discriminação outrora direcionada a eles foi-se arrefecendo a partir do término da Segunda Grande Guerra, não representando, presentemente, senão um fato relegado ao passado. Os séculos de endogamia forçada, no entanto, deixaram o seu legado entre os aproximadamente 18.000 xuetas, que compartilham um total de 15 sobrenomes e são, remota ou recentemente, aparentados entre si. A homogeneidade genética do grupo despertou a atenção de alguns rabinos ortodoxos, os quais, em 2011, chegaram à conclusão de que a matrilinearidade dos membros da comunidade fora provavelmente preservada, podendo, pois, serem considerados judeus de pleno direito”.
4 Conforme já analisado, o uso dos patronímicos para a aferição da ancestralidade judaica deve ser visto com cautela, não oferecendo balizas seguras para este intento.
O reconhecimento de sua identidade judaica possibilitou a estes indivíduos retornar à fé ancestral sem que fosse necessário se submeter ao rito de conversão, algo com que anseiam ardorosamente certos membros da comunidade anussim. Diferenças significativas entre ambos os casos, no entanto, tornam improvável que a benesse se repita entre eles. Cumpre destacar, de início, que os xuetas constituem um grupo de fácil identificação, habitando, tradicionalmente, alguns poucos distritos da cidade de Palma de Maiorca. Entretanto, os marranos nordestinos, conforme sustenta Brito (2014, p. 47), estariam espalhados pelo amplo território sertanejo, não sendo distinguíveis da população geral senão quando detidamente analisados seus costumes domésticos.
O grau de endogamia a que estiveram submetidas ambas as comunidades pode, do mesmo modo, ser apontado como importante fator distintivo. Enquanto que a intensa hostilidade social, unicamente arrefecida após a década de 1970, forçou os anussim de Maiorca à completa segregação, entre os seus correspondentes sertanejos há poucos relatos de qualquer estigma que tenha se prolongado por tanto tempo. Destarte, ausente o componente discriminatório nas relações destes grupos marranos com os demais membros da sociedade sertaneja, torna-se improvável que sua endogamia tenha sido tão estrita. Não há, sequer, qualquer comprovação de que os rituais de origem judaica praticados por estes grupos lhe tenham sido legados, especificamente, por via matrilinear, podendo, conforme aduz Brito (2014, p. 149) haver advindo de qualquer parente, mesmo em linha colateral.
2 FREUND, M. Majorca’s Master Chef returns to the Jewish people. 18 nov. 2013. Disponível em <http://www jpostcom/Opinion/Columnists /Majorcas-master-chef-returns-to-the-Jewish-people-332167>. Acesso em 11 mar. 2017.
Relatadas as vicissitudes enfrentadas pelos “Judeus novos” na trilha do retorno à fé judaica, resta analisar o meio alternativo posto ao dispor daqueles que desejam ser reconhecidos como judeus para fins legais: a conversão. Deve-se notar, inicialmente, que o judaísmo não respalda a atividade missionária, sendo um credo essencialmente não proselitista. Os rituais de conversão, em virtude disto, são sobremaneira árduos, requerendo considerável tempo de estudos, ao que se juntam as deliberadas tentativas de dissuasão empregadas por muitos rabinos oficiantes, a fim de verificar a profundidade da fé do pretenso convertido. Ao rol de dificuldades acresce-se a tradicional recusa dos rabinos ortodoxos em realizar conversões em território latino-americano, o que restringe ainda mais as possibilidades dos marranos nordestinos.
Neste particular, o veto conversório, que, nos dizeres de Zemer (1994) constitui um dos principais entraves à reversão dos b’nei anussim, repousa suas raízes no ano de 1927. Preocupados com a alta taxa de casamentos mistos – aos quais comumente se seguiam convertimentos insinceros – e temendo que isto fosse um precursor da completa assimilação da comunidade, os líderes judaicos da capital argentina expediram um takkanah (decreto rabínico) impedindo que se realizem novas conversões naquele país “até o fim dos tempos” (ZEMER, 1994, p. 89). Com efeito, rabinos ortodoxos dos demais países latino-americanos filiaram-se à orientação de seus correspondentes platinos, o que eventualmente resultou na completa vedação regional, que se prolonga até hoje.
Deste modo, os anussim que tencionem se submeter ao rito ortodoxo de conversão devem se dirigir a países haja Bet Din desta corrente disponíveis, notadamente Israel e os Estados Unidos. Podem, ainda, optar pelas conversões liberais ou conservadoras, as quais, não atingidas pelo veto rabínico, prosseguem sendo realizadas no Brasil. Esta alternativa, não obstante proporcione ao indivíduo plenos direitos para fins de concessão de cidadania, nem sempre é vista com bons olhos pelos marranos, em virtude de não ser plenamente aceita pelos círculos ortodoxos, e, consequentemente, pelo Rabinato Central de Israel.
Independentemente da vertente religiosa escolhida para a conversão, o empenho dos marranos para o reconhecimento de sua fé não havia encontrado, historicamente, ecos fora das respectivas comunidades. Até meados da década de 2000, o grupo havia merecido pouca atenção de rabinos, os quais, nos dizeres de Ramagem (1983, p. 86), tendiam a rejeitar inteiramente a possibilidade de legitimação de seu judaísmo. As conversões, outrossim, tendiam a ser pontuais, condicionadas não apenas pelas supramencionadas vicissitudes, mas também pela já demonstrada expectativa marrana pelo ritual de retorno. Sintomático desta tendência, Brito (idem, p. 49), nos primeiros anos da década de 2000, contabiliza apenas seis convertidos ao judaísmo na capital pernambucana.
Em 2005, contudo, o Estado de Israel coordenou o estabelecimento de um escritório da Shavei Israel em Recife, imbuindo-os da missão de se dedicarem à comunidade marrana nordestina. Fundada em 2002, a organização tem como escopo auxiliar no restabelecimento da fé mosaica entre comunidades cujas raízes judias foram perdidas em tempo remoto, ou mesmo entre aquelas cuja prática religiosa originou-se de modo espontâneo, não precedida de conversão. A organização é especialmente pró-ativa em partes do norte da Índia e dos Andes Peruanos, havendo sido responsável pelo convertimento coletivo e posterior aliyah de um generoso número de indivíduos de comunidades judaizantes daquelas regiões.
Neste particular, é paradigmático o episódio de conversão em massa conduzido no âmbito da comunidade indiana dos bnei Mnashe, após o qual uma expressiva parcela da dezena de milhar de “neojudeus” imigrou a Israel, tendo-lhes, ato contínuo, sido atribuída a respectiva cidadania. O grupo, cujos relatos mais antigos de prática judaica datam da década de 1970, é etnicamente indistinguível de seus vizinhos no norte da Índia, salvo pelo fato de reivindicarem descendência da tribo israelense de Manassés, dispersa após o exílio babilônico. A narrativa, embora não encontre respaldo em análises recentes do DNA destes indivíduos – as quais não puderam identificar entre eles quaisquer dos marcadores genéticos comumente encontrados entre os judeus ou nas demais populações do Oriente Médio – foi reconhecida como legítima pelo Rabinato Central Israelense, o que possibilitou sua imigração em massa após 2005″.
A ancestralidade judaica contestada e a identidade aferível a partir de costumes familiares de suposta origem judia em muito aproxima os b’nei Mnashe dos anussim nordestinos, tomando-os singular precedente em eventuais lides sobre o direito à nacionalidade israelense. A dispersão geográfica dos marranos, em oposição à concentração populacional de seus correspondentes no norte da Índia em algumas poucas localidades facilmente identificáveis, no entanto, representa um importante fator de distinção entre ambas as situações.
Não obstante as vicissitudes anteriormente enumeradas, e mesmo que a pretensão de retorno em detrimento da conversão talvez nunca venha a se concretizar, o trabalho da Shavei Israel começa a mostrar resultados concretos no Nordeste brasileiro. O site da instituição é proficuo em casos de indivíduos que, por intermédio da entidade, se submeteram ao processo de conversão ortodoxo, realizando localmente os estudos necessários e viajando, em data posterior, para países em que haja Bet Din ortodoxos, a fim de proceder à solenidade conversória. Os esforços de redescoberta das raízes judaicas dos matranos brasileiros, ademais, podem servir para fortalecer as relações existentes entre Brasil e Israel, as quais têm sido, em geral, cordiais.
B BBC NEWS. Rabbi backs India’s lost Jews. 1º abr. 2015. Disponível em <http://news.bbe.co.uk/2/h1/south asia/4400957.stm>. Acesso em 03 mar. 2017.
Mais que efeitos palpáveis, no entanto, o reconhecimento da identidade dos marranos nordestinos poderá servir como catalisador para um processo de resgate da história judaica no Brasil, obnubilada pelos séculos de repressão, genocídio e apagamento cultural a que esteve submetido o povo judeu durante o período da colônia. Os cristão-novos e anussim, cuja influência, segundo Novinski, deixou marcas profundas no nosso modo de ser, agir e pensar, constituem uma dos grupos étnicos matrizes da nação brasileira. Entender, portanto, os peculiares mecanismos de resistência que empregaram para preservar suas práticas religiosas pode fornecer um importante panorama histórico do país, ajudando-nos a compreender o presente e a identificar as potencialidades que nos ajudarão a construir o futuro.
Conclusão
Mais que um fenômeno social e antropológico, a emergência da identidade marrana no Nordeste traz consigo diversos reflexos atinentes ao direito internacional, em especial no que concerne à aquisição de nacionalidade. Não raras vezes, o desejo dos anussim pelo resgate da fé de seus antepassados remotos pode ser compreendido como um passo intermediário no processo de imigração sionista, lançando mão, para tanto, de dispositivos da Lei de Retorno, vigente em Israel. Esta pretensão, contudo, esbarra amiúde com empecilhos de diversas naturezas, sejam elas burocráticas, geográficas, religiosas ou mesmo de ordem meramente subjetivas.
O movimento marrano, cuja história recente pode ser traçada até a década de 1970, logrou êxito em agrupar sob sua égide um expressivo número de indivíduos que reclamavam para si a descendência judaica, pugnando, em face disto, pelo reconhecimento enquanto judeus de pleno direito. O desejo, no entanto, não encontra vozes de apoio entre os rabinos ortodoxos, os quais defendem que qualquer eventual ancestralidade judia não se apresenta suficiente para a definição da identidade de um indivíduo caso a matrilinearidade não puder ser aferida.
Não obstante isto, casos há em que a identidade judaica de determinados grupos étnicos foi coletivamente legitimada pelo Estado de Israel, permitindo a seus integrantes realizar a aliyah e obter a cidadania daquele país. Neste diapasão, podem-se citar os “chuetas”, da ilha espanhola de Maiorca, e os “Bnei Mnashe”, do norte da Índia, comunidades comprovada – como no primeiro caso – ou alegadamente – como no segundo -, relacionadas aos grupos da diáspora semita. Estes casos tornaram-se paradigmáticos para as comunidades marranas do Nordeste, que os vêm como precedentes na tarefa de validação de sua própria fé e identidade étnica.
Deve-se citar, igualmente, o importante trabalho desenvolvido pela “Shavei Israel”, organização israelense que tem como escopo a identificação e o auxílio à conversão junto a grupos que vindicam a ancestralidade semítica. Neste particular, a abertura de uma representação da entidade na capital pernambucana, em 2005, foi recebida com entusiasmo por importante parcela dos marranos nordestinos, alimentando suas expectativas em face do Estado de Israel. Representou, igualmente, a mitigação dos efeitos do veto rabínicos às conversões na América Latina, apontado por muitos como o principal fator impeditivo ao reestabelecimento da fé mosaica entre os anussim.
Deste modo, inobstante o desejo específico pelo retorno — prevalente entre determinadas parcelas das comunidades marranas – não pareça encontrar ecos no mundo prático, o processo conversório e posterior aquisição de nacionalidade israelense tornam-se cada vez menos árduos, havendo diversos relatos de sua ocorrência no Brasil, por intermédio da Shavei Israel. A organização, ademais, realiza importante trabalho de identificação e catalogação de hábitos marranos de origem judaica, contribuindo para o conhecimento público das raizes cristã-novas do povo brasileiro, bem como do histó-rico olvidado de repressão a que foi submetida a nação israelita em nosso território.
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