FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL
O que a Inquisição veio fazer no Brasil?
A INQUISIÇÃO PORTUGUESA só passou a frequentar as terras brasileiras no final do século XVI. Entre os anos 1540 e 1560, só houve dois casos: o do donatário de Porto Seguro, o blasfemo Pero do Campo Tourinho, e o do francês calvinista Jean de Bolés. O primeiro foi enviado para Lisboa a ferros, e o segundo, preso pelo bispo da Bahia, que tinha jurisdição sobre as heresias. Foram ocorrências isoladas e desvinculadas da preocupação maior do Santo Ofício lusitano desde a sua criação: perseguir os cristãos-novos judaizantes.
A estreia da Inquisição no Brasil ocorreu em 1591, com a primeira visitação do Tribunal de Lisboa à Bahia e a Pernambuco. Justifica-se: na segunda metade do século XVI, o Brasil recebeu muitos cristãos-novos envolvidos com a nascente economia açucareira. Eles viveram em paz durante décadas. Muitos continuaram a professar o judaísmo nas sinagogas domésticas, além de se unirem, pelo matrimônio, com os cristãos-velhos. A ameaça de índios na terra e de piratas no mar funcionava como força de coesão.
Tudo mudou com a chegada da visitação, que integrou nova estratégia inquisitorial, em tempo de União Ibérica, voltada para o Atlântico hispano-português. A estreia do Santo Ofício no Brasil amedrontou mais do que prendeu os cristãos-novos, embora tenha destroçado a sinagoga de Matoim, no Recôncavo Baiano. Em todo caso, deixou um rastro deletério, rompendo a solidariedade cotidiana que unia cristãos-velhos e novos da Colônia.
Ao longo do século XVII, outras visitações deram seguimento à ação inquisitorial, reforçada, no século XVIII, pela consolidação de uma rede de familiares e comissários, além da justiça eclesiástica, que pinçava suspeitos de heresia em suas visitas diocesanas. Foi esta a máquina que viabilizou a Inquisição no Brasil, resultando no seguinte balanço: 1.074 presos, sendo 776 homens e 298 mulheres; 48% deles e 77% delas eram cristãos-novos acusados de judaizar; a grande maioria dos homens presos (62%) morava na Bahia, em Pernambuco e no Rio de Janeiro, enquanto a maioria das mulheres (54%) vivia em terra fluminense, seguidas de longe pelas mulheres da Bahia (14%).
O auge da ação inquisitorial ocorreu na primeira metade do século XVIII (51% dos presos). Vinte homens e duas mulheres da Colônia foram queimados em Lisboa, todos por judaizar. Dentre eles, o dramaturgo carioca Antônio José da Silva (1739) e a octogenária Ana Rodrigues, matriarca do engenho de Matoim. A velha sinhá embarcou para Lisboa acompanhada de uma escrava e morreu no cárcere em 1593. Nem assim ela escapou da fogueira. O Santo Ofício desenterrou seus ossos para queimá-los em auto de fé, no Terreiro do Paço.
RONALDO VAINFAS É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE E AUTOR DE TRÓPICO DOS PECADOS (NOVA FRONTEIRA, 2010) E ORGANIZADOR DE CONFISSÕES DA BAHIA. (COMPANHIA DAS LETRAS, 2005).
Saiba Mais:
CALAINHO, Daniela. Agentes da Fé: Familiares da Inquisição Portuguesa no Brasil Colonial. São Paulo: Edusc, 2006.
FEITLER, Bruno. Nas Malhas da cCnsciência: Igreja e Inquisição no Brasil. São Paulo: Alameda, 2007.
Filme “A Santa Visitação”, de Elza Cataldo, 2006.
Acima, na gravura de Bernard Picart, do século XVIII, formas de tortura empregadas para extrair a confissão de um herege. Abaixo, numa gravura da mesma época, vista da cidade de Salvador, um dos locais onde a Inquisição agiu no Brasil
Saiba Mais
BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições — Portugal, Espanha e Itália. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994,
DEL COL, Andréa. L’Inquisizione in Italia dal XII al XXI Secolo. Milão: Armoldo Mondadori Editore, 2006
MARTÍNEZ MILLAN, José. La Inquisición Española. Madri: Alianza Editorial, 2007.
Abaixo, gravura do início do século XVII mostra a corte da Inquisição espanhola em Madri. No detalhe, a gravura de Bernard Picard (1673-1734) destaca um condenado usando o traje penitencial.
Quais as diferenças entre as Inquisições?
A INQUISIÇÃO MODERNA, diferentemente da medieval, contava com estruturas fixas e um corpo hierarquizado de agentes em atividade permanente. A de Castela e Leão, fundada em 1478 por iniciativa da Coroa, atuou na Espanha e em suas colônias da América Latina, nos Países Baixos e em regiões da Península Itálica sob domínio da monarquia hispânica sem maiores problemas de adaptação. Só foi abolida definitivamente em 1834. A portuguesa, estabelecida em 1536, na sequência de difíceis negociações e desencadeadas pelo rei D. João III, vigorou nos territórios de Portugal e de seu império pluricontinental, desde Macau, no Extremo Oriente, até o Brasil. Foi extinta em 1821.
A romana foi fruto de reorganização em 1542, durante o pontificado de Paulo HI, com a criação da Congregação Romana do Santo Ofício. Teve jurisdição na Península Itálica, e já em 1965 passou a designar-se Congregação para a Doutrina da Fé, modificando seus propósitos e práticas. Havia diferenças entre as três. A portuguesa não teve lastro medieval a precedê-la, ao contrário das outras. Embora alguns inquisidores – franciscanos e dominicanos – tivessem sido nomeados pelo papa, não há registro de sua atuação.
A natureza dos tribunais era distinta. Os ibéricos tinham uma aparência híbrida, com fortes vinculações e dependências em relação à Coroa e ao sumo pontífice, o que foi bem usado para garantir certa independência, em especial no caso português. Em Roma, a Congregação era exclusivamente dependente do papado. Nos casos espanhol e romano, os confrontos entre bispos e inquisidores foram mais fortes e recorrentes; enquanto em Portugal houve, de modo geral, grande cooperação e complementaridade entre eles.
Todas tinham como objetivo principal eliminar as heresias e preservar a ortodoxia do catolicismo romano. Mas elas se concentraram em grupos distintos. A portuguesa centrou sua atividade na perseguição aos cristãos-novos judaizantes, e assim se manteve até 1773, quando foi abolida pelo marquês de Pombal a distinção entre cristãos-novos e velhos. A espanhola, inicialmente, teve sua mira apontada para o mesmo alvo. No entanto, os delitos quantitativamente mais significativos foram as blasfêmias e o criptoislamismo praticado pelos mouriscos. A Inquisição romana, por sua vez, apontou baterias contra o protestantismo e, em segundo plano, contra as práticas mágico-supersticiosas.
O rigor repressivo também foi diferente. Em termos de volume, a espanhola se destacou. As penas aplicadas eram variadas: prisão, degredo, exposição pública na porta das igrejas, uso de hábito de condenado (sambenitos). A que teve mais condenados à pena capital foi a lusitana (cerca de 6%), seguida da espanhola (3,5%) e da romana, esta muito cautelosa em aplicar este tipo de sentença.
Até do ponto de vista da historiografia, as três apresentam perfis heterogêneos. Por mais paradoxal que pareça, aquela que nos dias de hoje conta o maior número de registros, a portuguesa, é a que menos se conhece. Não há sequer uma história geral sobre o assunto.
JOSÉ PEDRO PAIVA É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA E AUTOR DE OS BALUARTES DA FÉ E DA DISCIPLINA. O ENLACE ENTRE A INQUISIÇÃO E OS BISPOS EM PORTUGAL (1536-1750) (IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, 2011).
Ter origem judaica era sinônimo de culpa?
Os “batizados em pé”, ou cristãos-novos, eram os judeus convertidos à força ao cristianismo, com base em decreto de D. Manuel I, de 1497. Eles vieram para o Brasil desde o início da colonização e se dedicaram a várias atividades, tanto rurais como urbanas. Foram pequenos agricultores, senhores de engenho, artesãos, médicos, advogados, mercadores, donos de pequenas lojas, soldados e até padres. Exerceram cargos na burocracia colonial e estavam em todas as camadas da sociedade.
Sua integração, entretanto, nunca foi total, pois eram portadores de um estigma, o da “pureza de sangue” – originário dos Estatutos de Pureza de Sangue, promulgados em 1449, em Toledo, e adotados em todo o Império espanhol e português, inclusive na Colônia. Por essa razão, eram vistos como diferentes, além de presas fáceis para a Inquisição. Para o Santo Ofício, os cristãos-novos mantinham a religião judaica em segredo. Sempre foram considerados suspeitos de heresia porque, de acordo com o preconceito, o judaísmo fora incorporado pelo leite materno, não pela escola, pelos livros ou pela tradição.
Quando processados, os cristãos-novos eram obrigados a confessar e admitir culpas, fossem verdadeiras ou não. Aquele que não confessasse a crença na Lei de Moisés em algum momento de sua vida era considerado “negativo”, pois não reconhecia seus erros. O processado precisava recorrer à memória e a aceitar todas as denúncias de que era alvo, em uma estranha dinâmica inquisitorial na qual as denúncias eram mantidas em segredo. Aquele que não conseguisse citar todos que o tinham denunciado seria considerado “diminuto”. Ser condenado como negativo e diminuto equivalia à pena capital.
As sentenças, de modo geral, eram assim: “(…) recebem o réu (…) ao grêmio e união da Santa Madre Igreja como pede. E mandam que em pena e penitência das ditas culpas vá ao Auto Público de Fé na forma costumada, e nele ouça sua sentença e abjure seus heréticos erros em forma: terá cárcere e hábito penitencial perpétuo, com confisco de bens”, como está descrito no processo da ré Ana Henriques, de 1713.
Desde o século XVI, a Inquisição deu continuidade no Brasil à vigilância iniciada em Portugal, verificando a religião dos novos cristãos. Mais de 600 descendentes de judeus foram presos na Colônia e enviados a Lisboa, onde foram julgados como hereges judaizantes. Desses, 22 foram condenados à morte. A maioria dos cristãos-novos do Brasil foi considerada culpada de heresia.
LINA GORENSTEIN É PESQUISADORA DO LABORATÓRIO DE ESTUDOS SOBRE INTOLERÂNCIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO E AUTORA DE A INQUISIÇÃO CONTRA AS MULHERES (ASSOCIAÇÃO EDITORIAL HUMANITAS, 2005):
Saiba Mais
AZEVEDO, João Lúcio. História dos Cristãos-Novos Portugueses. Lisboa: Liv. Clássica Editora, 1922
NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia. 2º ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
WIZNITZER, Arnold. Os judeus no Brasil Colonial. Trad. Olivia Krahenbuhl. São Paulo: Pioneira, 1966.
Desenho de Nathan Benn mostra o interior da Sinagoga Sefardita de Portugal em Amsterdã, Holanda, construída em |67| por judeus fugidos da perseguição da Inquisição ibérica,
Saiba Mais
DELUMEAU, Jean. Nascimento e Afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989
LEVACK, Brian P, À Caça às Bruxas na Europa Moderna, 2º ed. Rio de Janeiro: Campus, 1988
SANTOS, João Henrique dos. “Da Conciliação Possível à Ruptura. Uma análise dos Documentos de 1520 de Martinho Lutero”. Tese de doutorado, UFJF, 2009
Filmes
“As Bruxas de Salem”, de Nicholas Hytner, 1996.
“Lutero”, de Eric Till, 2003
Protestantes também usaram estratégias de controle da fé. No alto, a gravura de Jan Luyken, do século XIX, representa uma execução. No centro, o teólogo e reformador João Calvino, em óleo do século XVI
Assim como os católicos, os protestantes perseguiram seus fiéis?
A Inquisição não foi o único caso de intolerância movida em nome de Deus na Época Moderna. Embora não houvesse a institucionalização de tribunais similares aos do Santo Ofício, também foram usadas estratégias de controle da fé nos locais em que o protestantismo era dominante, levando à perseguição por crimes como adultério, discordância dos dogmas protestantes e bruxaria.
Na Alemanha, o líder protestante Martinho Lutero (1483-1546) exigiu perseguições aos anabatistas, grupo cristão mais radical da Reforma, porque, entre outras questões, eles não aceitavam as regras da Igreja Evangélica e divergiam sobre o batismo.
A decisão causou a expulsão, o encarceramento, a tortura e a execução de milhares de pessoas. Lutero também divulgou textos com críticas aos judeus – embora sem maiores repercussões na época, estes escritos acabariam utilizados pela Alemanha nazista, em pleno século XX.
Em Genebra, um dos berços da Reforma Protestante e onde ela se mostrou bastante radical, funcionou uma verdadeira “polícia da fé”. João Calvino (1509-1564), devido à sua autoridade sobre os protestantes suíços, era conhecido como o “papa de Genebra”. Ao organizar a Igreja Presbiteriana, instaurou comissões compostas de religiosos e leigos: a Venerável Companhia, responsável pelo magistério, e o Consistório, que zelava pela disciplina religiosa. Para isso, promovia confissões, denúncias, espionagens e visitas às residências, levando muitos à prisão, à tortura, ao julgamento e, em alguns casos, à morte.
A população era proibida de cultivar certos hábitos, como jogar, dançar e representar. Alguns pensadores foram perseguidos, como o médico e humanista espanhol Miguel Servet Griza. Ele foi preso, condenado e queimado em efígie – representado por um boneco. Fugiu em direção à Itália, mas acabou preso em Genebra, onde foi processado pelo Conselho presidido por Calvino e queimado por causa de proposições vistas como antibíblicas e heréticas, entre outras culpas.
Na Inglaterra, uma verdadeira caça às bruxas levou à morte centenas de mulheres acusadas de feitiçaria. A experiência persecutória inglesa foi ainda “exportada” para as colônias na América do Norte, como no famoso episódio das “Bruxas de Salem”, ocorrido em Massachusetts, em fins do século XVII, em que várias adolescentes foram mortas, acusadas de promover reuniões em torno de uma fogueira nas quais, supostamente, invocavam espíritos.
Sem dúvida, não são poucos os exemplos de intolerância religiosa nos variados espaços que vivenciaram a Reforma Protestante, mas nada que representasse o equivalente dos estruturados tribunais inquisitoriais católicos.
ANGELO ADRIANO FARIA DE ASSIS É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA E CO-ORGANIZADOR DE RELIGIÕES E RELIGIOSIDADES: ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE. (EDIÇÕES PAULINAS, 2010)
Por que não foi criado um tribunal da Inquisição no Brasil?
Colônias espanholas na América tiveram seus tribunais inquisitoriais, assim como a Índia portuguesa. No Brasil, apesar da insistência de Felipe IV, não foi bem assim.
Durante as famosas visitações do Santo Ofício, em fins do século XVI e começo do XVII, foram forjados tribunais itinerantes. Houve inquéritos, julgamento de casos considerados leves e até a celebração de autos da fé, a cerimônia de leitura das sentenças. Mas um verdadeiro tribunal, como os instalados no México, no Peru, na Colômbia e na Índia portuguesa, jamais existiu por aqui. Como a colonização engatinhava e a população, além de pequena, era esparsa, foi descartada a ideia de se criar um tribunal específico.
Com o sucesso crescente da produção açucareira e o consequente aumento da população local, suscetível de cair nas malhas do Santo Ofício, Lisboa passou a despachar visitações semelhantes às que já circulavam pelo reino. Mas faltou combinar com os órgãos superiores da Inquisição. Excessos e desmandos cometidos pelos visitadores em atividade no Brasil definitivamente não agradaram à cúpula do Santo Ofício.
O primeiro projeto de criação de um tribunal no Brasil só surgiu em 1621. Com base nos vários pedidos e alertas de autoridades locais, inconformadas com a liberdade desfrutada por hereges, sobre tudo judaizantes, e também temendo um conluio desses cristãos-novos com os inimigos holandeses, o rei espanhol Felipe IV ordenou a criação de um tribunal em Salvador. Na época, Portugal compunha a União Ibérica, liderada pela Coroa espanhola. O bispo do Brasil devia fazer as vezes de principal inquisidor e julgar os casos localmente com a ajuda de jesuítas, franciscanos, beneditinos e carmelitas.
O inquisidor-geral, entretanto, propôs que se criasse um tribunal independente, com juízes nomeados por ele. Não interessava ao Santo Ofício entregar sua jurisdição ao bispo, pois outros eclesiásticos talvez vissem o caso como um precedente. Isto poderia enfraquecer a autoridade dos inquisidores perante os bispos, pois, em Portugal, eram esses eclesiásticos que julgavam os casos de heresia antes da instalação da Inquisição.
Mas o rei não se conformou. Foram duas as tentativas – em 1622 e 1629 – de criar esses tribunais no Brasil. A Inquisição fez ouvidos moucos e nada aconteceu. Os interesses políticos da Inquisição falaram mais alto do que a ideia de controlar o comportamento dos que viviam aqui.
Felipe IV voltou ao assunto em 1639. Preocupado com as devastações dos paulistas nas missões jesuíticas, o rei decidiu conceder poderes inquisitoriais ao bispo do Rio de Janeiro. Com a sucessão em Portugal no ano seguinte, o assunto morreu e não se falou mais nele, até porque a Coroa passou por graves apuros econômicos, incompatíveis com a instalação de novos tribunais.
BRUNO FEITLER É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO E AUTOR DE NAS MALHAS DA CONSCIÊNCIA IGREJA E INQUISIÇÃO NO BRASIL (SÃO PAULO, 2008)
Saiba Mais
Inquisição P Sociedade Colonial Paulo: Ática, 1978. VAINFAS, Ronaldo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997
Carceres da extinta Inquisição de Lisboa. Confissões da Bahia. São
Saiba Mais
MEA, Elvira Cunha de Azevedo. À Inquisição de Coimbra no século XVI. A instituição, os homens e a sociedade. Porto: Fundação Engenheiro António de Almeida, 1997
PEREIRA, Ana Margarida Santos. A Inquisição no Brasil. Aspectos da sua actuação nas capitanias do Sul, de meados do séc. XVI ao início do séc. XVIII. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2006.
SARAIVA, António José . Inquisição e cristãos: novos. 6º ed. Lisboa. Editorial Estampa, 1994
SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico. São Paulo: Companhia das Letras; Bauru: Edusc, 2009
Apesar da reconhecida intolerância, a Inquisição nem sempre foi muito eficiente.
Abaixo, procissão de flagelados em pintura de Goya, de 1823
A intolerância foi incorporada pela população?
Inácio de Souza Brandão acusou Cristóvão Ribeiro de Lira de “algumas heresias”. Lira respondeu dizendo que “todos os hereges se salvavam, que ninguém se perdia porque Cristo Senhor Nosso morrera por todos os homens”. O argumento de Lira assegurava a possibilidade de se encontrar salvação na lei de Moisés ou na de Maomé. Inácio, além de vigário da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, também era o comissário do Santo Ofício na Bahia, no fim do século XVII.
A ideia de “universalismo religioso” contida nas palavras desse homem era defendida tanto por cristãos-novos como por cristãos-velhos. No caso de Lira, não há qualquer indício de que ele tivesse nas veias “sangue infecto”, o que poderia indicar sua condição de cristão-velho. É natural que pessoas como ele forjassem sua concepção de mundo baseando-se em experiências pessoais. Grande parte do que diziam continha mensagens de esperança ao alcance de muitos outros, o que de fato era motivo de preocupação para a Inquisição.
A noção de intolerância está quase sempre associada à ideia de infalibilidade, eficácia e invencibilidade, características que, para muitos, marcaram a ação inquisitorial. A análise aprofundada dos documentos revela que a Inquisição não primou pela eficiência, muito menos conseguiu silenciar as pessoas, pois o registro de críticas é farto. A mordaça não foi tão bem apertada. É possível ouvir as vozes que gritam nos documentos.
O segredo exigido dos presos é ponto fundamental nesta discussão. Os réus deviam “ter segredo em tudo o que se passou no decurso de suas causas” e eram terminantemente proibidos “de levar para o exterior recados de outros presos”. No entanto, bilhetes eram trocados com a ajuda dos guardas, o que prova a falta de controle dessa máquina perseguidora.
A Inquisição foi, sim, intolerante, mas não de forma generalizada. E os documentos provam que a sociedade impôs limites ao Santo Ofício.
MARCO ANTÔNIO NUNES DA SILVA É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA E AUTOR DA TESE “O BRASIL HOLANDÊS NOS CADERNOS DO PROMOTOR: INQUISIÇÃO DE LISBOA, SÉCULO XVII” (USP, 2003)
Nomes de árvores e de animais correspondem a sobrenomes de judeus?
É comum a afirmação de que certos sobrenomes usados por lusodescendentes identificam origem judaica, herança de ancestrais cristãos-novos. De acordo com esta explicação popular, sobrenomes como Lobo ou Pereira identificariam a procedência. Será verdade? Para responder, é bom que se conheça um pouco do desenvolvimento da onomástica judaica.
Os judeus sempre usaram, para se identificar, um patronímico, o nome do pai. É só verificar no Velho Testamento — a Bíblia hebraica — os nomes dos personagens como Fulano ben (filho de) Sicrano. Hoje eles são usados apenas nas cerimônias religiosas. Os sobrenomes foram incorporados primeiro na Península Ibérica e depois, por influência napoleônica, fora dela. No mundo ibérico, já no século XIV, havia judeus que se identificavam com prenome bíblico e um sobrenome de variadas origens geográficas — Abravanel, Amado, Arruda, Cavaleiro, Cohen, Crespim, Franco, Navarro, Negro, Pinto, Toledano, Valentim etc – que, com o passar dos anos, foram incorporados aos patrimônios familiares.
A permanência dos judeus como convertidos, a partir do século XV, tornou obrigatório o recebimento de novos nomes e sobrenomes sem que houvesse um ordenamento jurídico para sua aquisição. Somente os prenomes tradicionalmente usados, como Abraão, Isaac e Jacó foram convenientemente abandonados, mas como o objetivo era a incorporação desta minoria à população majoritária, não havia sinais que os distinguissem pela onomástica. Os convertidos que mudavam de nome também nada traziam do passado. O objetivo era desaparecer na massa circundante.
Mas como encontrar os sobrenomes utilizados pelos cristãos-novos e seus descendentes se eles desapareceram na população geral? Convém consultar a documentação produzida pela Inquisição, como as listas de penitenciados e cerca de 40 mil processos movidos contra cristãos-novos entre os séculos XVI e XVIII. Lá está a maioria dos sobrenomes usados pelos portugueses. Do simples Santos ao dinástico Bragança. Em alguns casos, é possível encontrar a autoridade inquisitorial e o réu com o mesmo nome de família, sem que eles tenham vínculos de parentesco entre si.
O desconhecimento desse passado levou pesquisadores amadores a buscar uma teoria para localizá-los. Baseados no discurso religioso, principalmente nas bênçãos aos filhos de Jacó (Gênesis, 49:1-33), chegaram à conclusão de que nomes de plantas e animais correspondem aos sobrenomes de judeus, mas sem qualquer fundamentação na realidade.
É impossível descobrir a origem de um lusodescendente só pelo nome de família. É equivocado afirmar que alguém tem origem judaica só por ter um sobrenome como Barata, Bezerra, Carneiro, Carvalho, Cordeiro, Falcão, Figueira, Leão, Leitão, Lobo, Oliveira ou Pereira. A afirmação não se sustentaria na documentação produzida durante 300 anos. Não há sobrenome cristão-novo, mas um sobrenome ibérico usado por cristãos-novos, que muitas vezes foi o mesmo usado também por cristãos-velhos, ciganos, mouriscos, indígenas.
PAULO VALADARES É AUTOR DE A PRESENÇA OCULTA. GENEALOGIA, IDENTIDADE E CULTURA CRISTÃ-NOVA BRASILEIRA NOS SÉCULOS XIX E XX (FUNDAÇÃO ANA LIMA, 2007) E EDITOR DO BOLETIM DO ARQUIVO HISTÓRICO JUDAICO BRASILEIRO.
Saiba Mais
CARVALHO, Flávio Mendes. Raízes Judaicas no Brasil. O arquivo secreto da Inquisição. São Paulo: Nova Arcádia, 1992.
FAIGUENBOIM, G.; VALADARES, P.; CAMPAGNANO, A.R. Dicionário Sefaradi de Sobrenomes/Dictionary of Sephardic Sumnames. São Paulo: Fraiha, 2003, 2004 e 2010.
NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil. Séculos XVI-XIX. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 2002.
Abaixo, uma árvore genealógica num manuscrito do século XIX é um exemplo dos longos estudos necessários para se descobrir a origem dos sobrenomes.
Saiba Mais
BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições. Portugal, Espanha e Itália, séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
FEITLER, Bruno. Nas Malhas da Consciência. Igreja e Inquisição no Brasil. São Paulo: Alameda, 2007.
PAIVA, José Pedro de Matos. Baluartes da Fé e da Disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-1750). Coimbra: Editora da Universidade de Coimbra, 201?
VAINFAS, Ronaldo, FEITLER, Bruno, LAGE, Lana (orgs.). A Inquisição em Xeque. Temas, controvérsias e estudos de caso. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006.
Ao fundo, pintura mostra o Concílio de Trento, dedicado principalmente aos delitos morais. Ao lado, gravura de Severini, de 1881, a Inquisição de D, João IV em Portugal.
Foi MUITO MAIS COMPLICADA do que se imagina a instalação da Inquisição em Portugal. Depois de longas negociações entre o rei e o papado, o Santo Ofício enfim foi estabelecido em 1536. O surgimento dessa esfera de poder no campo religioso poderia desencadear atritos entre a nova instituição e o tribunal do bispo, que já exercia jurisdição sobre as heresias. No entanto, não houve conflitos relevantes. O poder real costurou um arranjo institucional do qual a Inquisição saiu fortalecida.
A justiça eclesiástica continuou tendo jurisdição sobre os hereges. Mas, na prática, em sintonia com as orientações reformistas do Concílio de Trento (1545-1563), dedicou-se aos delitos predominantemente morais. Quando os agentes do juízo episcopal e os visitadores diocesanos se deparavam com comportamentos considerados heréticos, eram prestativos e enviavam os casos aos inquisidores. A principal diferença entre os dois tribunais é que na Inquisição os processos corriam em segredo, os réus desconheciam seus denunciantes, os “advogados” não tinham acesso aos autos e era utilizada a tortura.
Diferentemente dos bispos, que depois de se tornarem inquisidores deixavam o cargo na diocese, os oficiais que atuavam fora das sedes do Santo Ofício – como os comissários, representantes locais do tribunal – podiam acumular, se quisessem, postos nas duas instituições. Essa boa relação foi importante para a presença inquisitorial no Brasil. No século XVIII, os comissários mais proeminentes da Colônia também eram ministros dos tribunais diocesanos. Normalmente, eles eram formados em Cânones – o ordenamento jurídico da Igreja – pela Universidade de Coimbra.
Entre 1718 e 1742, por exemplo, a Inquisição expediu diligências a Gaspar Gonçalves de Araújo, comissário no Rio de Janeiro, 36 vezes. Depois que se formou na Universidade de Coimbra, ele obteve colocações mais elevadas do bispado fluminense. Dentre elas, o posto de vigário-geral, a maior autoridade do juízo episcopal. Por isso, ele era um dos preferidos dos inquisidores, e foi o sexto agente mais contactado no Brasil.
A monarquia portuguesa estabeleceu uma complexa aliança com o poder religioso. A Igreja e a Inquisição até gozaram de certo grau de autonomia em determinados contextos. Tinham jurisdições próprias, e seus agentes projetavam nelas ambições de fazer carreira. Mas essa relativa autonomia não abalava o quadro geral das instituições geridas pelo rei. Nesse cenário, o tribunal inquisitorial foi criado e funcionou até 1821.
ALDAIR CARLOS RODRIGUES É HISTORIADOR E AUTOR DE LIMPOS DE SANGUE: FAMILIARES DO SANTO OFÍCIO, SOCIEDADE E INQUISIÇÃO EM MINAS COLONIAL (ALAMEDA, 2011)
Os índios também foram perseguidos?
Quando as epidemias grassaram nas Américas, dizimando numa guerra bacteriológica boa parte das populações indígenas; quando a exploração do trabalho dos nativos pelos colonos levou à escravização indiscriminada; quando a atuação das ordens religiosas reduziu os índios nas missões, ainda assim não foram esses todos os desafios que os povos indígenas enfrentaram. Outro ainda estava por vir: a atuação do Tribunal do Santo Ofício.
Estudos indicam que 33 índios e mamelucos foram prisioneiros da Inquisição em Lisboa entre os séculos XVI e XVIII. Mas, se levarmos em conta as denúncias, o número de casos é bem maior. Somente no século XVIII foram registradas 273 denúncias contra índios e descendentes mestiços de diferentes procedências étnicas por diversas razões.
Uma índia de nome Narcisa, por exemplo, foi acusada em Vila de Borba Nova, em1755, de fazer um malefício: uma boneca, com cabelos, ossos de peixes, retalhos de roupas rotas e amarrilhos, tudo cravado com agulhas e alfinetes. Ao desmanchar a boneca, a irmã da enferma, Benta de Souza, teve as mãos feridas em chagas sem que houvesse curativo, a não ser com exorcismos e azeite bento.
Narcisa e mais 157 índios acusados de feitiçaria e práticas mágicas não escaparam dos agentes da Inquisição. Outros foram envolvidos em roubo, venda de hóstias consagradas para a produção de amuletos – as populares bolsas de mandinga – ou cartas de tocar, que são os escritos usados como magia amorosa para seduzir o amado.
Havia ainda índios que, por virtuosismo, descobriam os malefícios com adivinhações, por meio de quibando, uma prática de adivinhação, recorrendo a peneiras e tesouras. Nomeavam seus mal-feitores e desenterravam as velhacarias. Um caso célebre é o de outra índia, Sabina, em Belém, que atendia o próprio governador do Grão-Pará, João de Abreu Castelo Branco.
O Tribunal foi mais rigoroso com aqueles que se consagraram em verdadeiros rituais gentílicos, tão mais espantosos aos ouvidos do inquisidor. Vários índios foram acusados de beber jurema e “descer demônios”, enquanto o mestre tocava o maracá entoando a dança embalada pela cantoria indígena. Uma dessas descrições é a de D. Souza e Castro, índio principal dos tabajaras, que foi dar conta pessoalmente à Mesa do Santo Oficio, em Lisboa, em 1720. Contava por meio de seu intérprete, o padre Antônio Leal, que a índia Antônia Guiragasu “invocava os demônios que lhe respondiam várias perguntas do outro mundo”. Para isso, “tomava umas grandes fumaças de tabaco de cachimbo até ficar como fora de si”.
Outro motivo de delações foi a bigamia. Das 78 denúncias, 24 foram processados, mas não há sentença final em 17 deles. Outros seis foram tomados como “casos extraordinários de absolvição” pela “ignorância e rusticidade” dos índios. Essa sentença “benevolente” não poupou Custódio da Silva, em 1741. Aos 28 anos, prestou seu depoimento por meio de um intérprete. Foi julgado e qualificado como bígamo. Condenado, abjurou de leve, por ser suspeito de ferir os preceitos da fé católica. Sob o olhar de uma multidão, fez auto da fé na forma costumeira. Foi açoitado pelas ruas de Lisboa até a Igreja de São Domingos, onde, na presença do rei D. João V, do príncipe e dos infantes D. Pedro e D. Antônio, inquisidores, ministros e toda a nobreza, foi sentenciado ao degredo por cinco anos para trabalhar nas galés de Sua Majestade.
Como se vê, essas narrativas extraordinárias mostram o quanto ainda precisamos conhecer sobre a história do nosso Brasil indígena.
MARIA LEÔNIA CHAVES DE RESENDE É PROFESSORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL-REI E AUTORA DE “DEVASSAS GENTÍLICAS: INQUISIÇÃO DOS ÍNDIOS NA MINAS GERAIS INQUISITORIAL”, IN: RESENDE, MARIA LEÔNIA CHAVES DE; BRÚGGER, SÍLVIA MARIA JARDIM (ORGS.). CAMINHOS GERAIS ESTUDOS HISTÓRICOS SOBRE MINAS. (ED. UFS), 2005)
Saiba Mais
CARVALHO JR. “Índios hereges”, in: Índios Cristãos. À conversão dos gentios na Amazônia Portuguesa (1653-1769). Campinas: IFCH/Unicamp, 2005 (Tese de doutoramento).
VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial, São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Ao fundo, gravura do século XVI mostra um chefe indígena sendo queimado pela Inquisição. Além de epidemias e escravidão, os índios ainda tiveram que enfrentar o Tribunal do Santo Ofício.
Entrevista com Anita Novinsky, por Rodrigo Elias
“A nova geração pesquisa a história desse tribunal corrupto”
Pioneira na pesquisa sobre a perseguição aos cristãos-novos pela Inquisição no Brasil, Anita Novinsky é referência nos estudos judaicos no mundo luso-brasileiro. Autora de obras que permanecem essenciais na abordagem do Santo Ofício, como Inquisição: Cristãos Novos na Bahia (1970, 1º edição), a professora livre-docente da Universidade de São Paulo foi desbravadora dos arquivos portugueses sobre o assunto. Nesta breve entrevista, ela avalia a atual produção brasileira e conclui que ainda há muito para se descobrir.
REVISTA DE HISTÓRIA: A Inquisição é um tema urgente no século XXI.
ANITA NOVINSKY: A Inquisição foi uma instituição repressiva, de extermínio, própria de um regime político totalitário. Hoje o mundo sofre ameaças do fundamentalismo, do fanatismo, e isso é preocupante para o futuro da humanidade. Conhecendo o passado histórico, talvez os homens se conscientizem dos perigos que corremos.
RH: O que despertou o seu interesse pelo tema?
AN: Muita gente ignora a presença da Inquisição no Brasil durante 300 anos. Houve prisões, confiscos, tortura e morte de brasileiros inocentes. Dois professores da USP me incentivaram: João Cruz Costa, de Filosofia, e Lourival Gomes Machado, de Sociologia. Os dois diziam que é impossível escrever a História do Brasil sem estudar os cristãos-novos.
RH: Percebe algum progresso nos estudos?
AN: A nova geração acordou para a necessidade de compreendermos que a História do Brasil foi escrita ignorando a ação de um tribunal de terror, que atuou em todos os níveis da vida brasileira – econômico, social, religioso e cultural. Hoje, em todos os estados, estudantes pesquisam a história desse tribunal corrupto e arbitrário. As novas pesquisas estão trazendo à tona os interesses materiais dos inquisidores.
RH: O que, de fato, ignoramos?
AN: Tudo ainda está por ser estudado na história da Inquisição no Brasil, que atuou do Amazonas ao Rio Grande do Sul. Há estados ainda não pesquisados, completamente virgens, como Alagoas. Interessam-nos as relações econômico-financeiras internacionais, a vida clandestina, a resistência, o contrabando, a religiosidade, os cristãos-novos na governança, as blasfêmias de uma população heterodoxa.
RH: Como a Inquisição afetou a colonização no Brasil?
AN: Afetou, por exemplo, a criatividade da população, ao proibir leituras, críticas, estudos superiores e imprensa. A Inquisição foi responsável, de acordo com o poeta português Antero de Quental, pela decadência dos povos peninsulares.
RH: O Santo Ofício uniu ou separou os cristãos-novos?
AN: Os cristãos-novos foram solidários com os que chegavam sem coisa alguma. Recebiam os fugitivos, os desterrados, a quem davam terras para trabalhar. Muitas vezes a população brasileira se recusou a compactuar com os agentes da Inquisição, o que levou um governador a tomar medidas severas. Durante toda a história colonial, os cristãos-novos mantiveram uma visão do mundo bem diferente da dos cristãos-velhos.
ARQUIVO PESSOAL
Estudos recentes vêm dando mais amplitude ao papel da Inquisição.
Ao fundo, gravura reproduz a formação de um tribunal.
FRANCISCO BETHENCOURT
Muito além do catolicismo, não há mais dúvidas sobre o papel do Santo Ofício. Falta agora entender o dos agentes.
As práticas judiciais e penais mobilizaram boa parte do debate sobre a Inquisição dos séculos XVI, XVII e XVIII. O Santo Ofício afirmou-se desde cedo como um tribunal que se sobrepunha a todos os privilégios de jurisdição existentes, mas a afirmação do seu poder contra os interesses de Estados particulares suscitou protestos, nomeadamente em Veneza, em Nápoles e nos Países Baixos. A prática de condenação na base de testemunha singular despoletou a grande controvérsia penal do século XVIII. O que falta desenvolver é um estudo comparativo das práticas judiciais civis, eclesiásticas e inquisitoriais.
A análise do aparelho burocrático nos seus diversos níveis avançou significativamente nos anos 1980 e 1990, envolvendo os conselhos gerais, os tribunais de distrito, os censores, as redes de comissários e de familiares. A implantação social tornou-se mais visível, com a revelação dos interesses mobilizados em todos os níveis. A etiqueta (cerimônias de capela, funerais régios, entradas régias) e os rituais da Inquisição (publicação dos editos, autos de fé) já foram suficientemente analisados para se reconhecer o lugar do Santo Ofício nas instâncias de poder. O que falta agora é desenvolver os estudos sobre a ubiquidade dos agentes que chegaram ao topo das carreiras em várias instituições, pois o seu papel em certos casos pode ter sido decisivo.
A articulação entre a Inquisição e outros mecanismos disciplinares é o aspecto que vem sendo estudado na fase mais recente. Em lugar de diminuir o papel da Inquisição, estes estudos, ao contrário, vêm mostrando o seu papel central e orientador, mobilizando as restantes instituições disciplinares, sobretudo nos casos espanhol e português. Numa linha mais plural, vem sendo estudada a importância dos tribunais eclesiásticos (jurisdição diocesana) na repressão da heresia, principalmente no sul da Itália, mas também no norte. Além disso, a Inquisição tem sido analisada não só no quadro teológico, mas também no âmbito do pensamento político. Por último, a Inquisição vem sendo debatida à luz da teoria do confessionalismo e da confessionalização, que procura ultrapassar a divisão catolicismo/protestantismo para mostrar os elementos comuns de construção de identidade religiosa e respectivo impacto na construção do Estado moderno. A aplicação do modelo ao caso espanhol é útil, pois lançou um ponto de debate, embora se possa considerar que o modelo piramidal weberiano de construção do Estado por via do topo e das instituições não é inteiramente satisfatório, deixando em aberto novos desafios teóricos.
FRANCISCO BETHENCOURT É CHARLES BOXER PROFESSOR DA KING’S COLLEGE LONDON E AUTOR DE “HISTÓRIA DAS INQUISIÇÕES. PORTUGAL, ESPANHA E ITÁLIA, SÉCULOS XV-XIX” (COMPANHIA DAS LETRAS, 2000).