Exemplo a ser Seguido
Corria o ano de 1860 e, em Paris, um grupo formado por seis jovens judeus decidiu formar, por sua conta e risco, uma instituição que tivesse como objetivo primordial combater as discriminações raciais e religiosas onde quer que fosse, difundindo os princípios da Igualdade, Fraternidade e Legalidade estabelecidos pela Revolução Francesa de 1789. Além desse nobre objetivo, a nova sociedade deveria apoiar os judeus que residiam nos países do Norte da África e do Oriente Médio, majoritariamente sefaradis, que atravessavam um prolongado período de declínio econômico, cultural e social.
Essas coletividades encontravam-se distanciadas das de seus irmãos da Europa, que vivia uma época de enorme esplendor cultural, alavancado pelas conquistas sociais, ascensão de uma nova classe, a burguesia, e pelos enormes avanços tecnológicos propiciados pela ciência. Além de proteger as minorias discriminadas, ela teria como escopo a qualificação profissional e a elevação do nível de vida dessas sofridas comunidades judaicas. Era a época de glória da França e quem se expressasse em francês, além de denotar elegância e cultura, dispunha de uma língua internacional para vencer as barreiras idiomáticas em que o mundo, qual gigantesca Babel, se encontrava. Difundir o francês, portanto, juntamente com o idioma local, mais as matérias tradicionais e o ensino da história judaica passou a ser o objetivo dessa modelar instituição, conhecida, até os dias de hoje, pelo nome de Alliance Israélite Universelle.
OS IDEALIZADORES
Charles Netter, descendente em linha direta de uma tradicional família de rabinos. Apesar de bastante jovem, já podia se considerar um homem rico. Ao invés de simplesmente deitar e rolar nas benesses que a fortuna poderia lhe propiciar, passou a dedicar-se de corpo e alma ao apoio das coletividades israelitas menos afortunadas.
Jules Carvalho que, como o próprio nome indica, provinha de uma família judia de origem portuguesa, era um cérebro privilegiado. Aos 40 anos já era respeitado como um dos mais conceituados Engenheiros de Pontes e Rodovias do país, sendo um dos pioneiros na construção das estradas de ferro e fundador do importante jornal “A Opinião Nacional”.
Eugène Manuel, conhecido poeta e homem de letras.
Aristide Astruc. Mais um de origem portuguesa. Rabino cuja família havia fugido de Portugal por causa das perseguições religiosas e se refugiado em Bayonne durante o reinado de Luis XIII. Era um intransigente defensor da família judaica que, segundo ele, deveria se manter fiel às tradições ancestrais.
Narcisse Leven, advogado famoso, colega de profissão e amigo pessoal de Adolphe Crémieux, o verdadeiro “pai da criança”. Crémieux teve de superar uma série crise familiar que ameaçou o futuro da recém fundada entidade. Enquanto se ocupava da organização, registro e fundamentos da nova instituição, a esposa, às escondidas, tratava de converter seus filhos ao catolicismo. Crémieux precisou se afastar da direção da sociedade para equacionar seus problemas domésticos, tendo retornado 3 anos depois, em 1863, quando foi eleito, por seus pares, Presidente da Alliance Israélite Universelle.
Isidore Cahen. Diplomado pela prestigiada Escola Normal Superior de Paris, era um renomado professor de filosofia e defensor intransigente da liberdade de ensino e do princípio básico de que Igreja e Estado deveriam se manter separados.
PRIMEIROS PASSOS
Nem bem a Aliança tinha registrado seus estatutos, ainda em 1860, e já precisou sair em campo para defender uma minoria religiosa que corria sérios riscos. Judeus ? Não, cristãos, no Líbano, ameaçados por motins populares. Em 1863, nova intervenção, também em favor de perseguidos religiosos. Dessa feita, na Espanha, onde o governo havia aprisionado missionários protestantes que haviam ousado desafiar a religião oficial do país.
O IMPÉRIO OTOMANO
A assinatura do armistício da Guerra Russo-Turca de 1877, programada para junho de 1878, em Berlim, propiciou à direção da Aliança Israelita a oportunidade de ouro que há muito esperava. Mesmo sem ter sido convidada oficialmente, pois não tinha nada a ver com o peixe, a Aliança Israelita Universal, pelo seu prestígio de entidade dedicada a defender os interesses das minorias, enviou uma delegação e conseguiu ser admitida oficialmente na mesa de negociações. Além disso, lavrou um tento ao aprovar resolução oficial de apoio às coletividades judaicas da Turquia Européia, com os votos das delegações da França, Alemanha e Inglaterra ( bons tempos aqueles ). O texto da moção não deixava margem a dúvidas: “As diferenças entre as crenças e confissões religiosas não poderão servir de motivo de exclusão ou incapacitação entre os indivíduos no que concerne aos direitos civis e políticos, a admissão em empregos públicos, cargos de confiança ou o exercício das diversas profissões e ofícios em qualquer localidade. A liberdade e a prática externa de todos os cultos estão asseguradas a todos os cidadãos nacionais e estrangeiros; nenhum entrave poderá ser colocado à organização hierárquica das diferentes religiões, assim como qualquer tipo de barreira entre os seguidores e seus chefes espirituais.”
A EMANCIPAÇÃO ATRAVÉS DO CONHECIMENTO
Na visão dos dirigentes da Aliança, o acesso à cultura era uma condição imprescindível à emancipação e participação no processo que eles mesmo denominavam “regeneração”, termo em voga na época que significava qualificar os judeus como cidadãos modernos e esclarecidos. Por aí já se tem uma idéia do estado de carência material e intelectual em que se encontravam muitos dos sefaradis residentes em atrasados países da África e Médio Oriente. A criação de escolas se impôs como a mais importante medida a adotar e a primeira delas foi inaugurada em outubro de 1862 na cidade de Tetuan, no Marrocos. Depois de Tetuan, foi a vez de Tanger, Rabat, Casablanca, Fez, Meknes, Oran, Argel, Túnis, Trípoli, Cairo, Alexandria, Jerusalém, Haifa, Tiberíades, Safed, Damasco, Beirute, Sidon, Alepo, Kirkurk, Bagdad, Basra, Teerã, Rhodes, Istambul, Izmir, Burgáz, Salônica, Larissa, Andrinopla, Sofia, Monastir, chegando aos confins de Varna, na Bulgária, às margens do Mar Negro. Entre 1862 e 1910 chegaram a funcionar um total de 70 estabelecimentos de ensino de alto nível, que ministraram a seus alunos e alunas, além das matérias normais do currículo de cada país, o idioma francês, história judaica e o ensino de uma profissão. Quem concluía seus estudos em alguma escola da Aliança Israelita Universal estava apto a enfrentar o mercado de trabalho em igualdade de condições tanto em seu próprio país quanto na Europa ou no Novo Mundo. E muitos o fizeram. É por isso que, até hoje, um número expressivo de sefaradis tem no francês sua primeira língua. Aprenderam-na com seus pais e avós, que foram alunos da Aliança, ou nos próprios bancos escolares. Os efeitos do magnífico trabalho realizado pelos diretores, professores e funcionários da Aliança Israelita Universal logo se fez sentir. Do Marrocos à Líbia, do Egito ao Iraque, da Turquia à Grécia, passando pela antiga Iuguslávia, Líbano, Síria e demais países da região, a situação dos judeus mudou por completo. Emergiu, nesses países, uma classe média educada nos mesmos princípios da elite européia. O total de alunos que cursou as escolas da Aliança alcançou a impressionante cifra de 1.000.000. Isso mesmo, um milhão de jovens que recebeu em seus bancos escolares ensino da melhor qualidade.
A ALIANÇA E A PRIMEIRA GRANDE GUERRA
A elevação das tensões políticas e militares que prenunciaram o início da Guerra de 1914-1918, em que França e Turquia combateram em campos opostos, obrigou o fechamento de inúmeras escolas da Aliança. Se, por um lado, esse fato foi ruim para muitos alunos, que tiveram de interromper seus estudos, por outro ajudou a disseminar a cultura judaico-francesa em outros continentes. Alguns dos professores da Aliança foram transferidos para a América do Sul, onde as colônias da Jewish Colonization Association, conhecida como ICA, desenvolvia seu trabalho pioneiro de fixação de judeus asquenazis provenientes, em sua maioria, da Rússia e dos Países Bálticos. A ICA organizou dezoito colônias na Argentina e duas no Brasil, no estado do Rio Grande do Sul. A Direção da ICA ficava na Bélgica e seus executivos falavam francês. Os colonos conheciam o russo e o ídishe e as populações locais o espanhol e o português. Como vencer as barreiras do idioma ?
SEFARADIS NAS COLÕNIAS DA ICA
Já sabemos que, por causa da guerra, alguns professores da Aliança Israelita Universal foram transferidos para a Argentina e sul do Brasil, onde lecionaram e trabalharam na administração das colônias agrícolas judaicas. O conhecimento de línguas foi um fator determinante para sua contratação. O francês aprendido na Aliança possibilitava os contatos com a direção da ICA e o ladino, uma mescla de português e espanhol que os sefaradis dos Balcãs falavam em casa, com os habitantes locais. Um caso típico é o do Professor José Pontremoli, que veio de uma escola da Aliança Israelita Universal em Izmir, Turquia Asiática, para uma colônia da ICA na Argentina. Pontremoli não gostou de trabalhar no país vizinho e pediu transferência para o Brasil.
Havia uma vaga de professor de português na Colônia de Philippson, perto de Santa Maria, e ele se candidatou ao lugar. Só que, de português, êle não conhecia absolutamente nada. Em terra de cego, quem tem um olho é rei e José Pontremoli, com facilidade para línguas e a proximidade entre o ladino e o português, com apenas algumas poucas aulas foi considerado apto a exercer a nova função. De professor, foi logo promovido a administrador da Colônia, cargo que exerceu por muitos anos. Como era praxe entre os imigrantes, mandou vir da Turquia seus pais e irmãos, que se estabeleceram em Porto Alegre, a capital do estado, dando início a um processo contínuo de fixação de sefaradis naquela cidade, onde fundaram, em 1922, o Centro Hebraico Riograndense, mas isso já é assunto para uma outra matéria. E a Alliance Israélite Universelle, 144 anos depois de sua fundação, a quantas anda ?
FIRME E FORTE
Quem for a Paris e se dirigir ao número 45 da rue La Bruyère vai se deparar com a imponente sede da instituição, que continua irradiando cultura em suas cinquenta escolas profissionalizantes de alto nível sediadas na França, Israel, Marrocos, Canadá, Estados Unidos, Espanha e Bélgica, além dos convênios de apoio pedagógico para o ensino do francês e de matérias judaicas mantidos com outras nove instituições.
DESATANDO O NÓ
Como a maioria das pessoas da minha geração nascidas no Brasil, estudei durante vários anos francês e inglês, tanto no colégio quanto em instituições especializadas. Até compreendo um pouco quando escuto ou leio em francês, mas falar, que é bom, nem pensar. O inglês, por força da profissão, dos inúmeros cursos e das frequentes viagens realizadas aos Estados Unidos, onde reside uma de minhas filhas, acabou sendo assimilado à força. Leio e escrevo razoàvelmente bem, mas minha pronúncia é ruim.
Qual o segredo utilizado pela Aliança Israelita Universal para ensinar um perfeito francês a turcos, búlgaros, iugoslavos, gregos, sírios, libaneses, israelenses, líbios, tunisianos, egípcios, argelinos, marroquinos, iraquianos e iranianos ? Por que não aplicar o mesmo método no Brasil, onde os jovens estudam, estudam e saem da escola sem falar ou entender idiomas ?
Uma outra questão que me impressiona bastante são os resultados obtidos pelas escolas da Aliança Israelita no que toca à qualificação profissional. Em apenas uma geração seus professores conseguiram o milagre de retirar da mais profunda ignorância uma quantidade enorme de moças e rapazes, deixando-os em condição de disputar, em pé de igualdade com os europeus, os melhores postos de trabalho. Em relação aos rapazes, tudo bem, precisavam ser alfabetizados para o Bar-Mitzva, mas as moças, não. Até meados do século 20, muitas eram proibidas de estudar.
Minha avó materna, para dar um exemplo, se alfabetizou às escondidas, para poder ler, em “rashi” ( textos em ladino com letras hebraicas antigas ), livros e jornais editados em Andrinopla, sua terra natal. Por que não aproveitar a fantástica experiência educacional da Aliança Israelita para, comunidade judaica em parceria com o governo e instituições da sociedade civil, lançar um projeto que permita elevar o nível sócio-educacional de grande parte da população brasileira, que se encontra em situação muito parecida à de nossos irmãos do Norte da África e Oriente no final do século 19 ? Pensem nisso, que eu já estou pensando há bastante tempo, mas não sei por onde desatar esse nó.