Doña Grácia Mendes
Os judeus começaram a habitar a Península Ibérica, a Sefarad dos textos bíblicos, a partir da queda do Primeiro Templo, por volta de 580 AC. Com exceção dos quatro séculos em que prevaleceu uma convivência harmoniosa entre as três grandes religiões monoteístas, a assim chamada Idade de Ouro da Humanidade, as perseguições, expulsões e conversões forçadas dos judeus ibéricos aconteciam ao sabor do tirano de plantão, fosse ele cristão ou muçulmano.
Península Ibérica
Em 1492, todavia, a coisa foi bem mais séria. Após a união de Castela e Aragão e a derrota dos mouros em Granada, os assim chamados Reis Católicos, Fernando e Isabel, assinaram o Édito de Expulsão dos Judeus. Concederam apenas três meses, prorrogados por mais três, para que centenas de milhares de judeus desocupassem suas casas, abrissem mão de seus bens e saíssem definitivamente do território espanhol. Se quisessem ficar, teriam de abandonar a fé ancestral e converter-se ao catolicismo. Caso fossem pegos praticando o judaísmo após o vencimento desse exíguo prazo de seis meses, poderiam ser presos e mortos.
DA GALÍCIA PARA A TURQUIA
Os Menda, que habitavam a aldeia de mesmo nome na Galícia, a exemplo das centenas de milhares de seus irmãos, acomodaram os poucos pertences que poderiam ser transportados e partiram em uma longa e arriscada jornada com destino à Turquia, nação que havia aberto suas portas para os refugiados judeus da Espanha. Como conseguiram chegar a um destino tão distante? Teriam ido por terra, expostos aos salteadores e esbirros da inquisição? Ou, quem sabe, por mar, em toscas e frágeis embarcações, à mercê das intempéries e piratas?
Istambul
Esse ainda é um ponto obscuro na história dos meus ancestrais paternos, mas cada vez mais me convenço ser bastante provável que essa viagem até o Império Otomano deve ter contado com o auxílio de uma família também judia e espanhola que ostentava um sobrenome parecido ao nosso, os Mendes.
http://www.youtube.com/watch?v=skIQ61CfLsw
FRANCISCO E GRÁCIA MENDES
O casal Francisco e Grácia Mendes, após a expulsão da Espanha, juntamente com outros 100.000 judeus, atravessou a fronteira e se dirigiu a Portugal. Todavia, ao contrário do Sultão da Turquia, que concedeu liberdade religiosa e econômica aos recém-chegados, Portugal preparou-lhes uma autêntica cilada. Em plena era dos descobrimentos, os portugueses precisavam do know-how dos judeus espanhóis, hábeis artesãos no trato do couro e dos metais. Ansiavam pelo conhecimento científico dos seus médicos, tidos como os mais renomados da Europa. Aguardavam, com ansiedade, a hora de dispôr das cartas náuticas elaboradas por seus pilotos, que sabiam navegar à noite, orientando-se pela luz das estrelas. E não escondiam o desejo de arrecadar fundos para o erário real, cobrando dos refugiados um elevado imposto para que pudessem ingressar em seu território. Portugal recebeu, de mão beijada, a nata do pensamento, da cultura, das ciências e do mundo dos negócio s. Desperdiçou-a, poucos anos depois, com uma nova temporada de conversões forçadas e perseguições, o que obrigou os judeus a se dispersarem mais uma vez.
MONOPÓLIO DAS ESPECIARIAS
Francisco Mendes, que já era um próspero empresário na Espanha, assim que chegou a Lisboa tratou de negociar com o Rei de Portugal uma concessão para importar da Índia e distribuir pelos demais países da Europa as chamadas especiarias, indispensáveis para temperar e conservar os alimentos.
Especiarias
A frota dos Mendes era imensa, calculada em centenas de embarcações. Que conduziam, além do cravo e da pimenta, uma carga ainda mais valiosa: seres humanos. Habilmente alojados em compartimentos secretos de seus barcos, os Mendes transportavam refugiados judeus da Espanha e de Portugal para destinos seguros no Império Otomano. Corriam riscos, tendo sido denunciados em mais de uma ocasião, mas não esmoreceram. Francisco Mendes faleceu em Lisboa em 1536, mesmo ano em que a inquisição se instalou oficialmente em Portugal. Sua viúva, Doña Grácia, cujo nome judaico de solteira era Hanna Nasi, tendo passado a utilizar, em Portugal, o de Beatriz de Luna e que acabou sendo conhecida como A Senhora, precisou assumir as rédeas das empresas. Em uma época em que as mulheres não costumavam trabalhar fora, limitando-se às tarefas domésticas. Grácia Mendes não perdeu tempo. Arregaçou as mangas e tratou não só de manter como ampliar os negócios da família. Q ue, a essas alturas, já tinham se expandido para as cidades de Antuérpia, Veneza e Ferrara. Nessa última localidade, onde havia sido instalada uma gráfica para a produção de livros judaicos, Grácia Mendes patrocinou o lançamento da famosa Bíblia de Ferrara, primeira obra impressa em ladino.
A Bíblia de Ferrara
O Mendes Bank, braço financeiro das empresas de navegação e comércio de sua família, por ela dirigido, passou a ser considerado o segundo maior estabelecimento do gênero em todo o mundo.
A FUGA
Parte substancial do lucro das empresas era aplicado no estabelecimento de rotas de fuga para os judeus, que continuavam a ser perseguidos, processados e mortos pela inquisição. Instada a entregar a única filha à corte portuguesa, onde deveria ser criada como uma boa cristã, Doña Grácia pediu autorização aos reis para realizar uma suposta viagem de negócios à Antuérpia, onde seu cunhado, Diogo Mendes, dirigia o escritório local da organização. Embarcou com a filha e a irmã em uma caravela, para nunca mais retornar a Portugal.
Roteiro de Fuga de Doña Grácia Mendes
Perseguida pelos agentes da inquisição e denunciada pela própria irmã, teve de utilizar mil e um estratagemas para conseguir despistar os representantes do obscurantismo religioso, precisando se transferir, durante longos onze anos, de uma cidade européia para outra. Nesse meio tempo Grácia Mendes conseguiu manter, além de boas relações com as principais casas reais, a quem costumava socorrer com empréstimos pessoais, uma rede secreta de estalagens nos caminhos que conduziam a Salônica, então sob domínio turco. Nesses estabelecimentos as famílias judias podiam se hospedar em segurança. Ali repousavam, se alimentavam e conseguiam novas parelhas de cavalos para a jornada seguinte, até o próximo albergue mantido pelos Mendes. Aliando a fuga por mar em um dos barcos da empresa ao percurso por terra, em carroças e com a utilização dessa rede de hospedarias, Dona Grácia conseguiu conduzir sãos e salvos dezenas de milhares de judeus ibéricos para o território otomano. Até que ela própria, juntamente com seus familiares, inclusive a irmã que a havia denunciado e fora por ela perdoada, conseguiu chegar a Istambul, após driblar espiões, salteadores e chantagistas de toda ordem. Na capital turca foi recebida com honras oficiais por Suleiman, o Magnífico, de quem se tornou amiga e conselheira. Assim que se sentiu segura, eliminou, de forma definitiva, o sobrenome Mendes, voltando a utilizar seu nome original, Grácia Nasi, passando a assumir-se, dessa feita sem necessidade de subterfúgios ou disfarces, plenamente como judia.
TIBERÍADES
O sonho de Doña Grácia era promover o retorno do povo judeu à Eretz Israel. Com o comando das suas empresas instalado em Istambul e privando da amizade com o Sultão, conseguiu sua aprovação para estabelecer uma colônia judaica próxima a Tiberíades, às margens do Mar da Galiléia, cuja construção foi por ela financiada. Por essa razão Grácia Nasi é considerada a primeira sionista da história. Em sua homenagem, foi inaugurado, em 2000, na própria Tiberíades, atualmente uma próspera cidade com 40.000 habitantes, o Museu Casa de Dona Grácia. Em 2010, ano em que se completaram cinco séculos de seu nascimento, o governo de Israel cunhou medalhas com sua efígie.
Medalha Cunhada em Israel – 2010
Coincidentemente, em 1553, na Itália, o artesão Pastonino de Pastori já havia produzido uma medalha que ostentava o seu perfil.
Medalha Com a Efígie de Grácia Mendes – Itália, 1553
RESGATE DA MEMÓRIA
O nome de Doña Grácia ficou esquecido durante muito tempo. Apenas os habitantes de Izmir, na Turquia, que frequentavam a Sinagoga da Señora, sabiam de quem se tratava, juntamente com os moradores de Tiberíades, em Israel. Nos últimos anos, porém, um intenso trabalho de resgate de sua obra vem sendo realizado. Foram lançados selos, em Israel, ostentando sua imagem e publicados dezenas de livros em diferentes países e idiomas relatando seus esforços para salvar judeus perseguidos unicamente por se manterem fiéis à religião de seus antepassados.
Selos Israelenses Homenageiam Grácia Mendes/Nasi
Quando Dona Grácia faleceu, em Istambul, em 1569, o Sultão decretou luto oficial em todo o Império Otmano. E o Israel Jewish News, recentemente, considerou-a, com toda a justeza, a Rainha Ester do Século XV.