HISTÓRIA DOS JUDEUS NO BRASIL

 INTRODUÇÃO

 A história dos judeus no Brasil constitui um caso único, pois não se conhece outro país no qual se tenham eles instalado logo nas primícias do respectivo povo, ficando-lhe continuamente associados e participando do seu desenvolvimento econômico e social.

 De fato, desde o descobrimento do Brasil até a época presente, os judeus, quase sem intermitência, aberta ou disfarçadamente, estiveram integrados nos processos de formação da nacionalidade brasileira.

 Isso não obstante, a historiografia judaica referente ao Brasil não deve ater-se às fases e aos marcos gerais da evolução política e social do país, e sim orientar-se essencialmente segundo os fatos e acontecimentos históricos que hajam repercutido especificamente nas condições de vida individual e sobretudo coletiva dos judeus.

 De acordo com tal critério, é lícito destacar quatro grandes ciclos na história dos judeus no Brasil, cada qual comportando diversas fases de ascensão, consolidação e declínio: 1 – O Primeiro Ciclo Português (1500-1630); 2 – O Ciclo Holandês (1630-1654); 3 – O Segundo Ciclo Português (1654-1822); 4 – O Ciclo Cosmopolita (1822-1966).

 1 – O PRIMEIRO CICLO PORTUGUÊS

 (1500-1630)

 Verificou-se o descobrimento do Brasil no ano de 1500, quando Portugal se achava no auge da sua expansão no mundo. Não era então somente a glória militar ou apenas o desejo de dilatar a fé católica que impeliam os portugueses às suas grandiosas expedições marítimas. Ao lado desses motivos, ou mesmo acima deles, imperava o espírito comercial, eis que Portugal visava controlar o intercâmbio com o Levante e ambicionava concentrar em suas mãos as principais atividades econômicas daquela época.

 Mas apenas esses motivos, por mais estimulantes que fossem, não teriam bastado para promover o extraordinário alargamento de Portugal; o grande ciclo das conquistas portuguesas, entre elas a do Brasil, não se teria concretizado sem o longo período de descobertas e aperfeiçoamentos científicos que o precedeu, e no qual tiveram papel de sumo relevo os sábios judeus ibéricos. Estes, aliás, desde o século XII, vinham se distinguindo sobremaneira nos domínios da matemática, astronomia e geografia, ciências essas básicas para a arte náutica, especialmente para a navegação oceânica, e os governantes portugueses aproveitaram de forma esgotante tal acervo científico israelita em prol da ascensão de Portugal à posição de grande potência naval. Assim, para a direção da “Escola de Sagres”, primeira academia portuguesa de navegação, fundada em 1412, foi escolhido um dos mais famosos cartógrafos do século XV, o judeu Jehuda Crescas, cuja missão essencial era ensinar aos pilotos portugueses os fundamentos da navegação bem como a produção e o manejo de cartas e instrumentos náuticos. Mais tarde, outros judeus de renome científico prestaram sua colaboração à “Escola de Sagres”, destacando-se os sábios José Vizinho, Mestre Rodrigo e, sobretudo, Abraham Zacuto, autor do “Almanaque Perpétuo de Todos os Movimentos Celestes”.

 Mas, a contribuição judaica ao descobrimento de novas rotas e de novas terras para a coroa portuguesa não se limitou ao campo científico de feição preparatória, senão também se traduziu em participação direta nas temerárias viagens, inclusive na expedição que resultou no descobrimento do Brasil, eis que, na frota dirigida por Pedro Álvares Cabral, viajavam como conselheiros especialistas pelo menos três judeus: Mestre João, astrônomo equipado com os instrumentos de Abraham Zacuto, Pedro Nunes, navegador, e Gaspar de Lemos, intérprete e comandante de navio, justamente considerado pelos historiadores como co-responsável pelo descobrimento do Brasil.

 Logo nos primeiros anos após a descoberta do Brasil, arrefeceu o interesse do rei de Portugal pela nova terra. A corte era naquele tempo verdadeiramente uma grande casa de negócio e como, por um lado, estivesse fundamente absorvida com as dispendiosíssimas expedições à Índia, onde pretendia estabelecer um vasto império colonial, e, por outro lado, não enxergasse lucros apreciáveis e imediatos na exploração do Brasil, este ia sendo relegado a um simples ponto de ligação nas viagens à Índia, uma escala de refresco e aguada.

 É assim de todo compreensível que, tendo o monarca D. Manoel recebido em 1502, de um consórcio de judeus dirigido pelo cristão novo Fernando de Noronha, uma proposta para exploração da nova colônia mediante contrato de arrendamento, ele a aceitasse de bom grado; era a colonização do Brasil que se lhe oferecia, para ser feita a expensas de particulares, sem riscos e sem ônus ou quaisquer encargos para o erário público. O contrato, que era um monopólio de comércio e de colonização, foi firmado em 1503, pelo prazo de 3 anos, tendo sido, com algumas modificações, sucessivamente renovado até 1515.

 A exploração concentrou-se especialmente na madeira de “pau-brasil” (também chamada naquele tempo “madeira judaica”), artigo então grandemente procurado nos mercados europeus para as indústrias de corantes. Tão intenso se tornou o comércio do pau-brasil durante o arrendamento do país a Fernando de Noronha, e de tal importância econômica ele se revestiu, que deu origem à denominação de “ciclo do pau-brasil”, sob o qual é conhecido, na história do Brasil, aquele período, além de ter determinado a adoção do nome definitivo da terra – Brasil – em substituição ao de Santa Cruz, como era antes designada.

 Admite-se que, ao lado dos objetivos comerciais, Fernando de Noronha, ao propor ao governo português o arrendamento do Brasil, visasse ainda facilitar o êxodo dos judeus, então perseguidos em Portugal. De qualquer forma, é do consenso geral que, nas expedições comerciais do sindicato de Fernando de Noronha, judeus constituíram a maioria, cabendo-lhes assim o mérito de terem lançado no solo da nova pátria os primeiros marcos da civilização.

 Na altura do ano de 1515, o Governo de Portugal despertou para a realidade: teria que tomar conta do vastíssimo território brasileiro se não quisesse expor-se ao risco de perder o comércio com ele e mesmo a soberania. Efetivamente, esse perigo existia, pois, àquele tempo, o litoral brasileiro era também freqüentado grandemente por franceses contrabandistas, que procuravam traficar com os indígenas, infringindo assim o monopólio português do pau-brasil; era visível, além disso, que a simples exploração localizada dessa essência florestal não poderia conduzir à colonização e ocupação da nova terra.

 Interrompeu então o Governo de Portugal o contrato com Fernando de Noronha e passou a tomar medidas de proteção militar do território brasileiro, bem como a incentivar a sua colonização mediante a implantação da cultura da cana-de-açúcar. Mas, a despeito das expressivas facilidades concedidas pelo Governo português nessa tentativa de colonização dirigida, tais como transporte, equipamentos e assistência técnica, raros eram os colonos portugueses cristãos que quisessem emigrar para o Brasil – provavelmente em virtude da atração que sobre eles continuava a exercer a Índia – razão por que, ao lado de criminosos, condenados ou exilados, se destacaram os voluntários judeus, que constituíam a maioria das levas imigratórias.

 Verifica-se, assim, que, não apenas no descobrimento e nas primeiras explorações do Brasil, mas também na colonização inicial do país, parece ter cabido aos judeus uma honrosa participação fundamental.

 Com os crescentes incentivos do Governo português à ocupação e ao povoamento do território brasileiro – inclusive através da sua divisão, entre os anos de 1534 e 1536, em 14 capitanias hereditárias, entregues a donatários – , novos motivos de estímulo foram se apresentando para a vinda de judeus ao Brasil. Os donatários, desejosos de imprimir prosperidade às suas capitanias, porfiavam em atrair colonos, mas, ainda desta feita, os portugueses cristãos preferiam a Índia, cujos efeitos atrativos perduravam. Não restava aos donatários senão recorrer mais uma vez aos judeus, que, aliás, se revelaram excelentes colonizados: estavam familiarizados com a indústria do açúcar, que já vinha sendo, desde muitos anos antes, a ocupação preferencial dos judeus das ilhas da Madeira e de São Tomé – de onde provavelmente foi a cana-de-açúcar transplantada para o Brasil – e, além disso, eram os colonos judeus hábeis no trato com o gentio, a cujos hábitos e língua logo se adaptavam, passando a contar depressa com a sua amizade.

 Assim, as possibilidades de progresso das capitanias dependiam em bom grau dos judeus, e, graças a essa circunstância, puderam eles gozar de bastante liberdade de costumes. E mesmo quando, depois de 1548, se implantou no Brasil um novo sistema de governo – o dos Governos Gerais -, a situação favorável dos judeus não sofreu qualquer alteração, muito embora na mesma ocasião se fixassem no país os jesuítas. As condições eram tais que as autoridades se viram forçadas a uma política de transigência e cautela. Na contingência de ou perderem as esperanças de colonização do Brasil, ou levarem a bom termo a missão de que se achavam incumbidas, optaram pela segunda alternativa e, para tanto, tiveram que fazer tábua rasa das exigências da Inquisição.

 Esse panorama de tolerância contrastava vivamente com a onda de ódio e discriminação que varria Portugal, onde crepitavam sem cessar as fogueiras dos autos de fé. É assim compreensível o efeito que entre os judeus de Portugal deviam exercer as notícias ali chegadas sobre a vida judaica no Brasil. Tangidos pela fúria avassaladora da perseguição religiosa, sentiam-se os judeus de Portugal impelidos a tentar vida nova no Brasil, que se lhes afigurava como refúgio seguro, onde poderiam concretizar-se os seus anseios de paz e liberdade.

 Em tais condições, tudo favorecia o estabelecimento de uma intensa e ininterrupta corrente migratória de judeus portugueses para o Brasil, onde, prosperando rapidamente, passaram a formar numerosos núcleos, dando mesmo início a uma razoável vida coletiva, como o testemunham referências encontradas sobre uma sinagoga que funcionava numa casa de propriedade do cristão novo Heitor Antunes, na cidade de Salvador – sede do Governo Geral – e sobre uma outra que fazia parte de um centro marrano em Camaragibe, capitania de Pernambuco, capitania que chegou a contar com um “rabi” – o cristão novo Jorge Dias do Caia.

 Essa situação bonançosa dos judeus brasileiros, nos meados do século XVI, pôde concretizar-se em virtude da existência dos principais fatores que permitem a evolução de uma comunidade minoritária: havia “suficiência numérica”, tendo os judeus, graças à intensa imigração e ao crescimento natural, alcançado uma proporção razoável em confronto com a população geral, o suficiente para se opor ao risco de assimilação; havia “refrescamento imigratório”, pois o processo de imigração era contínuo, e as sucessivas levas de judeus portugueses exerciam um papel reativante, contra-aculturativo; finalmente, havia “liberdade de culto”, com tolerância bastante para que os judeus mantivessem abertamente suas práticas religiosas, ainda que algo sincretizadas com o catolicismo.

 Entretanto, por volta de 1570, passou a toldar-se o horizonte judaico no Brasil, até então sereno. Começaram a surgir sinais de restrição à liberdade, que com o tempo se avolumaram, fazendo definhar a vida coletiva dos judeus – justamente quando parecia aproximar-se a sua consolidação – e forçando os judeus a retornarem, qual na sua mãe pátria, a uma vida disfarçada, de forma a guardarem as tradições apenas no recesso da família e assim mesmo com a devida cautela.

 A primeira manifestação oficial de intolerância verificou-se em 1573, na cidade do Salvador, onde foi instalado um auto de fé. Paradoxalmente, mas talvez de propósito, não era israelita a primeira vítima: era um francês que, acusado de heresia, foi condenado e queimado vivo. O balão de ensaio não surtiu, porém, os esperados efeitos junto à opinião pública, pelo que a Inquisição teve que encerrar pouco depois a sua nefanda tentativa.

 Alguns anos decorridos, entretanto, ela reiniciou a conspirata, até que, em 1591, veio ao Brasil a missão conhecida como “Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil Pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça”. Na Bahia, permaneceu a Inquisição durante dois anos, até 1593, seguindo então o Inquisidor para Pernambuco, ltamaracá e Paraíba, onde ficou até 1595.

 Em 1618, a Bahia foi alvo de uma nova visitação do Santo Ofício, que ficou a cargo do Inquisidor de Évora, o Bispo D. Marcos Teixeira. Diante dessas comissões inquisitoriais, que, aliás, se limitaram ao Nordeste do Brasil, foram denunciados inúmeros marranos, entre eles muitos senhores de engenhos de açúcar, fato que propiciou o primeiro movimento migratório interno dos judeus Brasileiros, os quais abandonaram o Nordeste em busca do Sul, especialmente da capitania de São Vicente (São Paulo), que era a parte mais liberal do país.

 Não se sabe ao certo dos motivos das duas visitações do Santo Ofício ao Brasil. É todavia de se presumir que tivessem fundo político, receosa como se achava a coroa portuguesa de que os cristãos novos brasileiros viessem a ajudar a Holanda, que então cobiçava conquistar o Brasil. Tal suspeita tinha certo fundamento. Com efeito, em virtude das crescentes perseguições aos judeus em Portugal nas últimas décadas do século XVI, eles passaram a emigrar, não só para o Brasil, mas também, em grandes levas, para vários países da Europa ocidental, sobretudo para a Holanda, onde florescia o comércio e reinava tolerância religiosa, o que permitiu a célere formação de uma ampla comunidade israelita, com centro na cidade de Amsterdã, justamente cognominada de “Nova Jerusalém”. E é certo que essa simultânea emigração dos judeus portugueses, para o Brasil e para os Países Baixos, propiciou o estabelecimento de um elo comercial e afetivo entre os judeus brasileiros e os judeus portugueses da Holanda.

 Desiludidos que se achavam com a mãe-pátria – onde seus parentes e correligionários sofriam privações e perseguições tremendas -, e já agora decepcionados com o próprio Brasil português, onde tudo a princípio parecia sorrir-lhes, mas onde passavam a acumular-se indícios hostis, os judeus brasileiros, instintivamente, na procura de algum outro ponto de apoio, sentiam-se impelidos a um intercâmbio cada vez mais estreito com os judeus portugueses residentes na Holanda, onde a liberdade, nos fins do século XVI, era absoluta em todos os terrenos.

 Era a possibilidade que eles vislumbravam de vir a ser melhorada a sua sorte graças à conquista do Brasil por uma outra potência – no caso, a Holanda!

 2 – O CICLO HOLANDÊS

 (1630-1654)

 A esperança dos judeus do Brasil de que a sua sorte melhoraria graças a alguma forma de intervenção holandesa não falhou. Finalizando uma série de tentativas de conquista do Nordeste brasileiro, através de invasões da Bahia, nos anos de 1624 a 1627 – a primeira das quais inicialmente favorável, pois conseguiram dominar a cidade do Salvador por quase um ano -, os holandeses afinal lograram seu intento em 15 de fevereiro de 1630, quando atacaram Pernambuco com uma poderosa esquadra de 70 navios, tripulada e guarnecida por 7000 homens, e assim iniciaram a ocupação do Nordeste, a qual iria durar até 1654.

 Foram poucos os anos de domínio holandês pacífico, mas bastaram para que os judeus, numa rapidez .impressionante, alçassem a um nível excepcional a sua vida econômica, social e cultural, dentro do arcabouço de uma organização coletiva, vindo a constituir no Nordeste do Brasil uma comunidade das mais florescentes do mundo de então.

 Antes da conquista holandesa, os judeus brasileiros exerciam, em larga escala, as atividades de plantadores de açúcar, mas os donos de engenho representavam apenas uma percentagem razoável, e os magnatas não passavam de uma escassa minoria.

 No mais, a colônia judaica era constituída de pequenos comerciantes e de profissionais manuais mal remunerados. Com o advento dos holandeses e a decorrente implantação de uma grande tolerância religiosa, o panorama foi se alterando. Levas ininterruptas de judeus afluíam a Pernambuco de vários países, especialmente da Holanda, trazendo cabedais, experiência comercial e um prodigioso espírito de realização.

 Esses judeus vindos da Holanda – e que em grande parte eram ex-refugiados de Portugal, Espanha e França – tinham a vantagem de falar vários idiomas: espanhol, francês, ladino, holandês, afora o mais importante, o português, que era a língua falada no Brasil; era-lhes fácil assim servir de intérpretes para os milhares de homens do exército e da marinha holandesa, constituídos de mercenários – holandeses, ingleses, franceses, alemães, polacos e outros – que não falavam o português. De simples intérpretes, foram rapidamente passando a cambiadores e comerciantes, de um modo geral a intermediários, profissão que se tornou quase monopólio dos judeus, com eles não podendo competir os pequenos negociantes e operários brasileiros e flamengos. Não tardou que os judeus se tornassem grandes proprietários urbanos e rurais, passando a controlar a vida econômica da Nova Holanda brasileira, merecendo lembrar, como testemunho disso, que a principal rua do Recife era conhecida como “Rua dos Judeus” e o porto era chamado “cais dos judeus”.

 Paralelamente com a prosperidade econômica dos judeus no Brasil holandês, desenvolveu-se com vigor a sua vida coletiva. Para tanto, contribuiu fundamentalmente a liberdade de culto implantada pelos holandeses, sobretudo durante o governo do conde Maurício de Nassau, no período de 1635 a 1644. Havia ainda, como circunstância essencial, o crescimento contínuo e sensível da população judaica e sua concentração preponderante numa área restrita, em torno da cidade do Recife. Esse crescimento populacional resultou principalmente da intensa imigração oriunda da Holanda, de cujo porto Amsterdã partiam constantemente naus carregadas de judeus e conversos, sendo que, só de uma feita, em 1642, embarcaram 600; mas, aos imigrantes do estrangeiro, cabe também acrescentar os judeus que, de outras partes do próprio Brasil, vinham para Pernambuco, em busca de liberdade religiosa. Não se sabe exatamente o número de judeus no Brasil holandês, variando as estimativas entre 1.500 e 5.000; mas, admite-se que, no apogeu do desenvolvimento da comunidade judaica da Nova Holanda, os judeus representavam cerca de metade da população branca civil, e no Recife havia judeus em tamanho número que, à primeira vista, se tinha a impressão de uma cidade puramente judaica. Para se ter uma idéia da importância de que, naquele tempo, se revestia um núcleo israelita de 1.500 almas, segundo a menor das referidas estimativas, basta lembrar que a própria comunidade judaica de Amsterdã, no seu pleno fastígio, não era mais numerosa.

 Ao alcançarem a forma de coletividade organizada, os judeus de Pernambuco contavam com duas sinagogas e um cemitério próprio, e possuíam uma comunidade sagrada – Kahal Kadosh – chefiada por uma diretoria, sendo conhecidos os componentes de uma delas: David Senior Coronel, Dr. Abraham de Mercado, Jacob Mucate e Isaac Castanho. Havia ainda a Congregação Zur Israel (A Rocha de Israel) do Recife, que mantinha um “Pinkes” (livro de atas) e baixava “haskamot” (regulamentos). Assim, os “regulamentos” revistos em 1648 estabeleciam que todos os judeus residentes no “Estado do Brasil” e todos os futuros imigrantes tornavam-se automaticamente membros da Comunidade Judaica e deviam inscrever os nomes no “Pinkes”, como demonstração de que aceitavam os regulamentos. Também na ilha de Itamaracá, havia uma comunidade organizada, e era presidida por um rabino próprio, Jacob Lagarto, que foi, aliás, o primeiro escritor talmúdico na América do Sul.

 Em tal ambiente de segurança e de organização coletiva, a consciência de grupo avultou, chegando as festas judaicas a ser celebradas publicamente com procissão nas ruas. O auge desse desenvolvimento sócio-cultural foi atingido pelos judeus de Pernambuco em 1642, quando providenciaram a vinda da Holanda de um insigne líder espiritual, Isaac Aboab da Fonseca, que veio acompanhado do “hazan” Moisés Rafael de Aguiar. Isaac Aboab permaneceu à testa da comunidade judaica do Brasil até o fim do domínio holandês, tendo desenvolvido um vasto programa de trabalhos, rabínicos e sociais, sem prejuízo da atividade literária, da qual é testemunho a obra “Miiméi Iehuda” que ele escreveu em colaboração com Moisés Rafael de Aguiar, e que tratava da vida cultural dos judeus brasileiros.

 Em 1645, tendo Maurício de Nassau deixado o governo, entrou em fase de declínio a vida judaica no Brasil, fase que iria terminar um decênio mais tarde com a melancólica liquidação da pujante comunidade que se havia erguido – aparentemente com tanta solidez – no Nordeste do Brasil.

 A saída de Nassau favoreceu sobremodo o nascimento da insurreição pernambucana, pois, em substituição a esse notável estadista, que havia logrado granjear as simpatias gerais da população, ficara a administração do domínio holandês entregue a um triunvirato composto de indivíduos completamente incapazes, que não tardaram a implantar um regime opressor e tirânico.

 Os judeus de Pernambuco cedo deram-se conta do que a nova situação viria representar para eles. Previram facilmente que, sem a política tolerante e apaziguadora do príncipe de Nassau, seria inevitável o enfraquecimento e queda do domínio holandês, ficando eles irremediavelmente expostos à sanha dos insurrectos pernambucanos. Em vista disso, iniciaram o processo de retorno à Holanda, tendo emigrado em alguns anos cerca da metade da população judaica, sobretudo os negociantes mais ricos.

 O comércio começou então a decair, o dinheiro passou a escassear, e as tropas já se recusavam a combater, chegando mesmo a, mediante suborno, desertar para o exército português, que, em verdadeiro contraste, possuía moral elevadíssimo. Para agravar a situação, a Holanda, que então se achava em guerra com a Inglaterra, não podia prestar a necessária ajuda à colônia decadente, e os reforços, que todavia lhe mandava, eram insuficientes e extemporâneos.

 Embora a conjuntura se apresentasse nitidamente desfavorável aos holandeses, os judeus que permaneceram em Recife – cerca de 700 – resignaram-se a aguardar até o último instante o desfecho da luta, ficando fielmente ao lado dos holandeses e com eles compartilhando de todos os horrores do longo cerco da cidade.

 Sobre essa atitude de inteira fidelidade, assumida pelos judeus remanescentes de Recife – no mesmo sentido da anterior solidariedade judaica, demonstrada por ocasião das invasões holandesas – não faltam pronunciamentos desfavoráveis. Há, com efeito, quem a considere uma espécie de deslealdade ao Brasil, É um erro que cabe corrigir. Merece notar desde logo que o Brasil não estava propriamente em jogo. Aos judeus impunha-se escolher entre dois ocupantes, entre duas potências estrangeiras: Portugal e Holanda. De um lado – o país que perseguia, expulsava e queimava vivos os judeus; do outro – a nação que agia para com os judeus, tanto na metrópole como nas colônias, com a maior tolerância religiosa. De um lado – a Inquisição e os autos de fé; do outro – a liberdade de consciência. Entre os dois senhores, não havia outra possibilidade de escolha!

 E aliás, procedendo como procederam, os judeus guardaram uma linha de impecável coerência. Eles que, por todas as formas a seu alcance, ajudaram os holandeses a conquistar o Nordeste brasileiro, na esperança, não desmentida, de obterem no Brasil um lar tranqüilo, não poderiam abandonar os aliados e protetores da véspera no momento em que a sorte começava a faltar-lhes. Tal como souberam os judeus da Nova Holanda armar os seus sonhos – que chegaram a ver em boa parte realizados -, também mostraram saber suportar a sua ruína, lutando bravamente até a queda final da sua cidadela, com o que se haveria de encerrar o ciclo mais fastigioso, embora efêmero, da vida judaica no Brasil colonial.

 3 – O SEGUNDO CICLO PORTUGUÊS

 (1654-1822)

 Com a queda de Recife e subseqüente capitulação dos holandeses, entrou em plena desagregação a comunidade israelita do Nordeste do Brasil.

 Uma pequena parcela resignou-se à permanência no país, dispersando-se pelo seu território, enquanto o grosso optou pela emigração. Destes, um grupo – constituído provavelmente dos mais ricos e mais relacionados na Holanda – decidiu retornar a esse país, ao passo que a maioria preferiu enfrentar o desconhecido, aventurando-se em direção das mais longínquas paragens das três Américas – Guianas, Antilhas e Nova Holanda norte-americana -, onde lançaram a afirmação pujante de sua vitalidade, contribuindo eficazmente para o desenvolvimento econômico de várias colônias francesas, inglesas e holandesas, e nelas implantando numerosas aglomerações judaicas, uma das quais viria a ser nos tempos modernos a extraordinária comunidade israelita dos Estados Unidos da América do Norte. Nas Guianas, os judeus fugitivos fixaram-se de começo em Caiena e, mais tarde, em Suriname, onde organizaram uma comunidade duradoura, que chegou a contar mais de 1.300 almas; seu núcleo mais importante – com 1.045 judeus numa população de 2.000 – ficava nos arredores de Paramaribo e era conhecido como “Savana Judea”. Nas Antilhas, distribuíram-se entre a Martinica, Guadalupe, Barbados, Jamaica e São Domingos, dedicando-se à sua tradicional ocupação – a indústria açucareira. Graças a esse concurso dos judeus foragidos do Brasil, conseguiu a América Central estabelecer o seu monopólio no mercado mundial do açúcar, monopólio esse que antes estava nas mãos do Brasil. Forneceram, assim, aqueles judeus às colônias centro-americanas os elementos de riqueza que, por influência da desastrada política dos monarcas portugueses, o Brasil desprezara!

 Na América do Norte, um grupo de 23 judeus, que deixou Recife logo depois da sua queda, acampou, em 12 de setembro de1654, à margem do Hudson, na aldeia de Nova Amsterdã (atual Nova York), então capital da Nova Holanda. Vencendo toda a sorte de dificuldades opostas pelo governador da colônia, o autocrata e anti-semita Pierre Stuyvesant, os judeus originários do Brasil foram se radicando na nova pátria, crescendo em número, organizando-se em comunidade e disseminando-se pelo país, onde, com o correr dos séculos, viria desenvolver-se a maior das coletividades israelitas do mundo.

 Como já foi mencionados o êxodo que se verificou após a expulsão dos holandeses não abrangeu a totalidade da população judaica do Nordeste dos Brasil, tendo um bom número de marranos resolvidos permanecer na terra que haviam aprendidos a amar. E uma vez apagados os primeiros ressentimentos, puderam esses judeus remanescentes difundir-se pacificamente pelo território brasileiro, inclusive em áreas do próprio Nordeste, reduzindo ao mínimo as aparências da sua origem judaica.

 Acresceu que, após a morte do rei D. João IV em 1656, a Inquisição fez recrudescer as perseguições aos judeus em Portugal, culminando com a promulgação da lei de 9 de setembro de 1683, que determinava a expulsão dos cristãos novos e a aplicação da pena de morte aos que voltassem ao país. Esse fato contribuiu para que se intensificasse a transmigração de cristãos novos portugueses para o Brasil, cuja população judaica pôde, assim, não somente recompor-se do tremendo abalo sofrido com a desagregação pós-holandesa, mas ainda experimentar um razoável crescimento numérico.

 Mas essa acomodação, tão bem levada a efeito pelos judeus brasileiros na segunda metade do século XVII, não logrou transpor o umbral do século seguinte, quando, afinal, a Inquisição de Lisboa, cujas garras até então mal haviam conseguido arranhar a população judaica do Brasil, acabou estendendo sobre este país a sua implacável rede de perseguições. A sanha natural dos inquisidores viu-se atiçada pelas renascidas perspectivas de maciços confiscos, eis que os judeus brasileiros, graças ao seu ajustamento econômico operado na parte final do século XVII, e ao posterior enriquecimento em conseqüência da intensa exploração das minas de ouro e do comércio de diamantes no começo do século XVII, haviam voltado a constituir uma parcela das mais opulentas da colônia.

 Essa onda de terror que, com algumas intermitências, se desdobrou por longos 70 anos, com especial virulência nos períodos de 1707 a 1711 e 1729 a 1739, conferiu à primeira metade do século XVII as características de época negra da história dos judeus no Brasil. E somente após 1770, começaram a criar-se condições outras, que viriam extirpar para sempre o cancro da Inquisição, que tanto manchara a história de Portugal e tanto fizera decair esse grande império dos tempos manoelinos. (*) (*) Entre as vítimas brasileiras da Inquisição Portuguesa, no fase da sua mais nefanda atuação, figura Antônio José do Silvo, cognominado “O Judeu”, e tido como uma das maiores expressões da genialidade judaico-brasileira. Nascido no Rio de Janeiro em 1705, transladou-se aos oito anos de idade para Lisboa, onde se achava a sua mãe, levada prisioneira pelos agentes da Inquisição sob a acusação de judaísmo. Cedo começou Antônio José a revelar os seus excepcionais dotes de inteligência, aliados a um invulgar pendor literário, e em poucos anos enriqueceu a literatura portuguesa de numerosas peças teatrais de singular valor. Como dessas peças extravasasse com freqüência um sarcasmo sem rebuços contra a torpe atividade da Inquisição, esta o marcou e não mais descansou no afã de eliminá-lo. E não tendo conseguido fazê-lo calar-se por meio de uma série de intimidações, acabou enredando-o numa complicada trama de denúncias e falsos testemunhos e, afinal, condenando-o a pena capital em 11 de março de 1739. Em 21 de outubro do mesmo ano, foi Antônio José do Silva queimado, na praça pública, não tendo faltado sequer alguns requintes de crueldade: foram obrigadas a assistir ao ato – a sua mãe, sexagenária, sua mulher e sua filha de quatro anos.

 Até hoje não se sabe ao certo quantos judeus oriundos do Brasil caíram vítimas da Inquisição de Portugal. Há quem avalie em apenas 400 o número dos judaizantes brasileiros processados, dos quais não mais de 18 teriam sofrido a pena capital; mas essas hão de ser cifras por demais modestas, longe de darem uma idéia exata da extensão que na verdade a tragédia assumiu, pois que, ainda hoje, permanecem inexplorados, nos arquivos da Torre do Tombo, em Lisboa, 40.000 processos da Inquisição, cuja investigação revelaria certamente à História toda a hediondez dessa fanática instituição.

 Em 1770, a vida judaica no Brasil passou a beneficiar-se de um liberalismo crescente como reflexo das mudanças havidas em Portugal, onde a Inquisição acabava de entrar em seus últimos estertores, golpeada de morte pelo clarividente e poderoso ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, mais conhecido como Marquês de Pombal. O ato decisivo, conseguido pelo Marquês junto ao rei D. José I, foi a promulgação, em 25 de maio de 1773, de uma lei que extinguiu todas as diferenças entre cristãos velhos e cristãos novos, lei essa que, um ano mais tarde, em 1° de outubro de 1774, foi regulamentada por um decreto que passou a sujeitar os veredictos do Santo Ofício à sanção real.

 A repercussão das disposições pombalinas no Brasil foi automática e eficaz. Após setenta anos de perseguições tremendas, estavam os judeus e cristãos novos brasileiros ansiosos de se igualarem aos demais habitantes do país, e o liberalismo da nova lei foi um franco estímulo a esse anseio de assimilação. Bem entendido, tal processo de integração não se fez de pronto, nem de maneira cabal, pois que não desaparecera a desconfiança com relação às reviravoltas políticas da coroa portuguesa. Foram necessários 50 anos para que, alcançada a Independência do Brasil em 1822, e promulgada a Constituição de 1824, desaparecesse, pela via aberta da assimilação, o problema judaico brasileiro de gênese portuguesa.

 É oportuno lembrar que foi marcante a contribuição dos próprios judeus brasileiros para o movimento emancipador que viria trazer a sua extinção como grupo pela completa integração na coletividade nacional. Sirvam de testemunho as palavras do grande historiador brasileiro Adolfo Varnhagen: “Os judeus foram os pioneiros da Independência do Brasil. A sua valiosa contribuição, a sua tenacidade de raça eleita, de povo perseguido, constituíram os alicerces onde colocou-se o lábaro ardente da esperança da libertação do Brasil do jugo da mãe-pátria.”

 4 – O CICLO COSMOPOLITA

 (1822-1966)

 Uma vez emancipado o país, e implantada liberdade integral de consciência, nada mais restava que pudesse sustentar a sobrevivência coletiva dos judeus, os quais, tão logo perceberam que desta vez a liberdade viera em caráter duradouro, cortaram as últimas e débeis amarras que os prendiam ao passado judaico e difundiram-se rapidamente no seio da população geral.

 O único fator que, nessa conjuntura, talvez ainda lograsse reacender a chama pretérita e preservar aqueles judeus da assimilação total teria sido uma imigração maciça e homogênea de judeus de nível cultural elevado e de tradições afins. Mas, essa possibilidade única inexistiu de todo, pois que, depois da Independência, enfraqueceu de muito o movimento imigratório no Brasil, sendo que a imigração judaica praticamente se anulou.

 Cabe, apenas, abrir um parêntese para uma exceção verificada no extremo norte do país. Logo após a Independência, principiaram a afluir para a Amazônia judeus provenientes do Marrocos. Tratando-se de uma imigração de origem nova, sem qualquer afinidade histórica ou cultural com a população brasileira da região, fácil e cômodo foi a esses judeus marroquinos conservarem sua religião e tradições, cedo vindo a fundar, no ano de 1824, uma sinagoga de nome “Porta do Céu”, na cidade de Belém.

 Essa aglomeração judaica da Amazônia, que com o decorrer dos anos foi sendo ampliada de maneira contínua com elementos oriundos da mesma região norte-africana, disseminou-se pelos pontos estratégicos do grande rio, passando a desempenhar um papel relevante no desenvolvimento econômico da região, bem como no intercâmbio comercial com o estrangeiro. Entretanto, o agrupamento judaico da longínqua Amazônia, isolado cultural e materialmente das regiões vitais e mais adiantadas do país, não podia, evidentemente, exercer qualquer influência sobre o judaísmo indígena que, de resto, já havia entrado então na sua fase de total oclusão. E assim, durante a primeira metade do século XIX, coube à remota e minúscula comunidade israelita-marroquina da Amazônia – que mal contaria duas centenas de almas – o papel de sustentáculo único da continuidade judaica no Brasil.

 Entretanto, no limiar da segunda metade do século, começou a modificar-se a situação. Sem prejuízo do prosseguimento da migração judaica norte-africana para a região amazônica, foram chegando ao Rio de Janeiro – de onde irradiavam para os Estados vizinhos, especialmente para São Paulo e Minas Gerais – judeus procedentes de vários países da Europa Ocidental – franceses, ingleses, austríacos e alemães, sobretudo alsacianos – a tal ponto que, em 1857, já sentiram a necessidade de fundar uma sinagoga na capital do país.

 As duas aglomerações – a da região amazônica e a do Rio de Janeiro – não mantinham entre si quaisquer relações de grupo e apresentavam, aliás, características diferentes.

 A coletividade amazônica era mais estável, eis que os judeus marroquinos vinham para o extremo norte do Brasil com a intenção de ali se radicarem, tendo eles, em conseqüência, alargado com o tempo o seu campo de atividades, de molde a abranger não somente o comércio interno e o de exportação e importação – este especialmente de tecidos – mas também o setor da navegação e da exploração de seringais, afora a participação nas atividades públicas e no exercício de cargos oficiais.

 Já no Sul, os judeus, originários do oeste europeu, vinham antes com o objetivo de prosperar e de em seguida regressar aos países de origem, embora muitos acabassem permanecendo no Brasil, ou porque não houvessem logrado o desejado enriquecimento rápido, ou porque já se sentissem dominados pelo apego à nova terra. Em face daquela predisposição inicial, limitavam-se os judeus dos Rio de Janeiro e dos Estados vizinhos às ocupações comerciais, sem nenhuma tentativa de integração em outras atividades econômicas, de feição mais estável e caráter mais fundamental, e muito menos procuravam imiscuir-se na vida pública do pais.

 Na última década do século XIX e durante a primeira do século XX – 20 anos estes que constituem a verdadeira fase pré-imigratória moderna – a imigração judaica cresceu de vulto, multiplicando-se os países de procedência e também as regiões em que os imigrantes passavam a fixar-se no Brasil. Enquanto, até então, os imigrantes judeus provinham quase exclusivamente do Norte da África e do Ocidente europeu, já agora passaram a chegar também levas de judeus do Mediterrâneo Oriental – Grécia, Turquia, Síria, Líbano e Palestina – bem como da Rússia e países vizinhos, localizando-se de preferência na zona sudeste do país – Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais – mas também se disseminando, em pequenos núcleos, por muitos outros Estados, tanto do Sul como do Nordeste.

 Não obstante o caráter rapsódico da imigração judaica nessa fase (1890-1910), alguns pontos peculiares podem ser estabelecidos:

 1) No extremo sul do país, a comunidade judaica originou-se de uma tentativa de colonização empreendida pela JCA (Jewish Colonization Association), a qual, na primeira década do século XX, adquiriu terras no Rio Grande do Sul e nelas instalou colonos trazidos principalmente da Rússia. Ao contrário do que ocorreu na Argentina, a iniciativa da JCA no Brasil não logrou seu objetivo, em boa parte devido à má escolha da região, tanto que, em poucos anos, as colônias Philipson e Quatro Irmãos viram-se abandonadas pelos colonos, que foram trocando a agricultura pelo comércio nas vilas e cidades próximas, acabando por se concentrarem na capital do Estado, a próspera cidade de Porto Alegre, onde com o tempo se desenvolveu uma significativa coletividade judaica – a terceira do país.

 2) Nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, a parcela mais substancial dos imigrantes proveio de uma pequena região do sul da Rússia, mais precisamente, da parte norte da Bessarábia; é, assim, historicamente justo reconhecer os imigrantes bessarabianos do início do século XX como grupo germinativo da coletividade judaica moderna do Brasil.

 3) O quadro das principais concentrações israelitas do Brasil, no ano de 1910 – ás vésperas do início da vida judaica organizada no país – pode ser apresentado nestes termos sucintos: no extremo norte – o agrupamento da Amazônia, datando de 1822, isolado e conservantista, de origem norte-africana; no extremo sul – o conjunto de colônias judaicas do Rio Grande do Sul, com imigrantes de origem russa; e no sudeste – o possante binário Rio de Janeiro-São Paulo, com numerosos núcleos satélites, resultante de uma imigração cosmopolita.

 Conquanto ainda não existissem quaisquer ligações de grupo mais firmes entre essas diversas aglomerações judaicas, é entretanto fato digno de registro que em 1910 já existia no Brasil uma coletividade judaica em potencial, que praticamente abarcava todo o território nacional; uma rica infra-estrutura, sobre a qual viriam em breve apoiar-se as vastas e homogêneas ondas imigratórias do leste europeu – Bessarábia, Ucrânia, Polônia, Lituânia, Romênia – consolidadoras da moderna coletividade israelita do Brasil (*). (*) O quadro da população judaica do Brasil, na começo do Século XX, ficaria incompleto se não fosse mencionada a existência então, no Rio de Janeiro, e também em São Paulo, de fortes contingentes israelitas de categoria inteiramente distinta, quer no tocante aos motivos da sua imigração, como no referente ao seu gênero de ocupação. Trata-se dos judeus ligados ao mercado do meretrício, o ominoso “tráfico das brancas” que operava dentro do quadro de uma grande organização internacional. Socialmente isolados pela coletividade judaica nascente, que com eles não queria ser confundida, esses elementos marginais – chamados tméim (impuros) e também linke (esquerdos) – não tiveram oportunidade de contribuir para a formação da moderna comunidade israelita do Brasil, sendo que, depois de 1930, sobretudo por motivos de repressão legal, eles foram rareando e afinal desaparecendo, sem deixar vestígios.

 Em 1911 é que teve verdadeiramente início a vida judaica organizada no Brasil, em seu ciclo moderno. No Rio de Janeiro, foi fundada, no referido ano, uma sinagoga – Bet Iacov; no ano seguinte – a sociedade de “Ajuda Fraternal” Achiezer; em 1913, a organização sionista Tiferet Zion; e em 1916 – o Comitê em prol das Vítimas da Guerra, bem como a Biblioteca Sholem Aleichem – esta de se considerar a primeira instituição cultural judaica do Brasil – afora outras associações de menor vulto. Em São Paulo, na mesma época, foi fundada, em 1912, a Comunidade Israelita; em 1915 – a Sociedade Beneficente Feminina; e em 1916 – a Instituição Beneficente “Ezra”, a Biblioteca Judaica, o centro sionista “Ahavas Zion”, e o Comitê de Auxilio às Vítimas da Guerra. Também em Porto Alegre foram, no correr da segunda década, criadas várias instituições religiosas, filantrópicas e educacionais, merecendo-se destacar a fundação, em 1915, dos primeiro órgão de imprensa judaica no Brasil, um semanário redigido em idish, sob o nome de “Di Mentshait” (A Humanidade). Cabe, finalmente, mencionar ainda a cidade de Curitiba, onde, já em 1913, a reduzida população judaica se organizou em torno de um centro social.

 Mas, se foi tão dinâmica a atuação organizacional judaica ao longo do segundo decênio do século, é certo que numericamente a coletividade permaneceu pequena, e só depois de terminada a Primeira Guerra Mundial é que a imigração teve um forte incremento, de um lado porque então já se desvanecera entre os judeus brasileiros a aspiração de regressar à Europa, pelo que mandavam buscar seus parentes para aqui se radicarem, e do outro lado porque, naquela altura, o governo americano havia imposto severas restrições à imigração nos Estados Unidos. Sobretudo no decorrer do período 1920-1930, foram ininterruptas as levas de imigrantes judeus vindos da Europa oriental, circunstância que deu extraordinário impulso á vida coletiva judaica no Brasil; com singular entusiasmo, foram sendo criadas, inclusive nas cidades menores, instituições de toda sorte – sinagogas, escolas, sociedades beneficentes, bibliotecas, centros sociais, clubes juvenis, grupos dramáticos e órgãos de imprensa.

 Quanto ao campo educacional – muito ajudado pela JCA – basta mencionar que, ao findar a terceira década do século, havia funcionando no país nada menos que 27 escolas judaicas. No setor da imprensa, há a assinalar, naquele período, o surgimento dos jornais Dos Idishe Vochenblat (Semanário Israelita), fundado em 1923, Di Idishe Folkstzaitung (A Gazeta Israelita), em 1927, órgão de elevado gabarito, e Di Idishe Presse (A Imprensa Israelita), em 1930, todos surgidos no Rio de Janeiro, e A Gazeta Israelita, fundada em 1931, em São Paulo. E mesmo a produção literária eclodiu nesse período com livros de poesias e contos, em hebraico e idish.

 Cabe ressalvar apenas que a situação econômica da coletividade judaica não acompanhou esse surto surpreendente da sua vida sócio-cultural, e isto, em parte, por causa dos reflexos da depressão mundial. Com exceção de uma parcela que se encaminhou para a indústria (têxtil, de confecções e de móveis), especialmente em São Paulo, e para o comércio varejista (tecidos e móveis), o resto, ou seja a grande maioria dos imigrantes, dedicou-se ao comércio ambulante (klientéle), ramo este trabalhoso e de rendimento em geral discreto.

 No ano de 1933, a vida judaica penetrou em nova fase, tumultuária e decadente. Como fator mais ponderável, é de se apontar o regime restritivo à imigração, instituído em 1931. Sem o constante refrescamento imigratório que caracterizou o decênio anterior, só a inércia fez com que a vida coletiva judaica ainda prosseguisse viçosa por mais uns poucos anos. Em acréscimo, sobreveio no ano de 1933 o movimento nazista, cujo espectro acabou atingindo as plagas do Brasil; fascinados pelo prestígio alemão, alguns componentes de um partido brasileiro quiseram, numa imitação ingênua, disseminar pelo Brasil o mito racial, mas, mesmo então, com todas as condições conjunturais favoráveis, tanto no país como no campo internacional, a tentativa fracassou redondamente, por falta de ressonância da parte do povo.

 Liberta dos sobressaltos provocados por esse ensaio anti-semita, a coletividade judaica passou, entretanto, a sofrer os efeito de certos atos legais restritivos às atividades de estrangeiros em geral, um de tais atos, baixado em 1939, exigindo que os jornais em língua estrangeira inserissem a tradução dos artigos publicados, e o outro, em 1941, interditando totalmente a publicação de jornais em línguas estrangeiras; além disso, ficou praticamente proibido usar o idish nas reuniões e assembléias.

 Amordaçada, assim, a imprensa idish – embora sem intenção específica – e freada a liberdade de reunião, a vida social judaica ficou por vários anos reduzida a atividades religiosas e beneficentes, cabendo mencionar a este respeito o valioso concurso trazido pelos imigrantes judeus alemães, que começaram a afluir ao Brasil depois de 1933, e que, com muita eficiência, organizaram suas próprias instituições.

 Resta entretanto ressalvar que a educação judaica não decaiu de ritmo durante essa fase sombria, o mesmo se dando com a produção literária, que prosseguiu razoavelmente nas suas proporções discretas. E quanto à imprensa judaica, que teve, lamentavelmente, silenciados os seus órgãos em idish, há a assinalar de positivo o surgimento, no Rio de Janeiro, em 1942, de uma bem estruturada revista semanal, “Aonde Vamos”, redigida em português, idioma em que também foram publicados com êxito os periódicos “Jornal Israelita” (Rio) e “A Civilização” (São Paulo).

 Terminada a Segunda Guerra Mundial, em 1945, os ideais democráticos voltaram a dominar o país, dando azo a que se reanimasse a vida coletiva dos judeus do Brasil. Conhecido o saldo trágico da hecatombe européia, com a perda pesadíssima de seis milhões de almas judias, cresceu sobremaneira entre os judeus brasileiros a consciência de solidariedade grupal, o senso de responsabilidade pela sobrevivência judaica no mundo, agora repousando mais acentuadamente sobre os ombros do judaísmo americano. Por um lado, formaram-se e reorganizaram-se então instituições para ajudar os prováveis imigrantes da Europa, indo-se ao extremo de fundar duas grandes escolas profissionais “ORT”, no Rio e em São Paulo, destinadas a facilitar aos refugiados a sua integração na economia do país; por outro lado, revigorou-se o ideal sionista e multiplicaram-se as respectivas atividades, que atingiram o auge com o advento do Estado de Israel, em 1948.

 A educação judaica intensificou-se sensivelmente depois de 1945, embora não chegasse jamais a contemplar senão 20 a 30% das crianças em idade escolar. A imprensa em idish ressurgiu com muita vitalidade a partir de 1947, com a Idishe Presse e Idishe Tzaitung, no Rio de Janeiro, e Undzer Shtime e Der Naier Moment, em São Paulo, ao lado de diversos periódicos judaicos em português. E a produção literária prosseguiu satisfatoriamente, com vários livros publicados de gênero diversificado, em idish e português, sobre temas judaicos e gerais. Também as atividades associativas tiveram forte incremento, com a fundação de numerosas instituições religiosas e clubes recreativos-culturais de alto gabarito, no Rio de janeiro e em São Paulo, e mesmo nos centros menores, afora a criação de Federações e uma Confederação Nacional. Finalmente, a situação econômica no pós-guerra experimentou enorme avanço, tendo os judeus brasileiros quase abandonado a mercancia ambulante para progressivamente penetrar na indústria e no grande comércio. Entretanto, a partir de 1955, a vida sócio-cultural judaica passou a definhar qualitativamente, fato este que se pode atribuir a várias circunstâncias de efeito conjugado: 1) a sensível melhoria do nível econômico dos judeus brasileiros e conseqüente enfraquecimento do seu espírito gregário; 2) a consolidação e relativa normalização do Estado de Israel e conseqüente redução do seu poder galvanizador; 3) a irresistível ação assimilante do ambiente não-judaico; 4) o império da improvisação nas atividades de criação e condução das instituições, sem planejamento e sem enquadramento democrático em entidades-teto; e 5) a falta de entrosamento entre os líderes da geração pioneira, refratários à evolução do processo social judaico, e a nova geração, ávida de uma orientação mais condizente com o espírito da época.

 CONCLUSÃO

 A história dos judeus no Brasil é uma longa e honrosa trajetória, pontilhada sem dúvida de sofrimentos, mas também repleta de sucesso, traduzido em contribuições positivas e fundamentais para o desenvolvimento do país e para a formação do seu povo.

 Na exploração das costas brasileiras, no desbravamento do interior, no progresso da lavoura, do comércio e das indústrias, enfim nos movimentos ideológicos de emancipação política da terra – em tudo os judeus dos séculos passados deixaram marcas indeléveis da sua participação ativa, e tudo eles impregnaram do seu senso progressista e dos seus valores de cultura; por outro lado, em conseqüência de ampla miscigenação ao longo de centenas de anos, entraram eles poderosamente na composição étnica nacional, e transmitiram ao brasileiro de hoje largos contingentes éticos, antropológicos e culturais.

 Os judeus brasileiros do século XX vêm prosseguindo na mesma trilha construtiva e, conquanto não guardem estrita continuidade com as populações israelitas de antanho, eles têm, como coletividade, todos os motivos para se apossarem daquele patrimônio histórico, de o integrarem com a sua própria contribuição e, portanto, de se terem por legítimos partícipes da nacionalidade.

 Eis que seus ancestrais, por quatro séculos, foram deixando um legado precioso ao país. Quatro séculos: nem sequer um dia menos que a própria história do Brasil!

SALOMÃO SEREBRENIK

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