Caesar Malta Sobreira*
Este é um dia de júbilo. Estamos reunidos na casa de Gilberto Freyre, o gênio de Apipucos, para o lançamento de uma obra como que escrita no bronze, com letras de ouro e iluminada pela jóia preciosa que é a história de Pernambuco, nossa pátria imortal.
Albuquerque: a herança de Jerônimo, o Torto, é um livro magnífico que já nasce clássico, fruto das pesquisas de Cândido Pinheiro Koren de Lima. Deu-nos, o autor, a mais importante obra genealógico-histórica sobre o homem nordestino. Estamos diante do mais denso tratado cujo objetivo é “resgatar a verdadeira origem do homem nordestino”, abrangendo todo o período colonial e reverberando até os nossos dias.
O livro trata da descendência de Jerônimo de Albuquerque, o Adão Pernambucano, o Patriarca Nordestino, o Venerando Cisne Branco que – praticando a sábia doutrina de Afonso de Albuquerque – semeou uma herança genética do qual era portador: uma síntese transcultural contendo sangue de cristão-novo judaico, misturado com as etnias que professavam o islamismo: os khamitas norte-africanos e os árabes, estes também semitas como os judeus. Além, é claro, da matriz caucasiana, branca, européia, que remete à mescla de celtíberos, visigodos, alanos e suevos, entre outros. Aqui, este dotação genética recebeu o acréscimo do sangue indígena autóctone.
Partindo da obra-referência, a Nobiliarquia Pernambucana, de Borges da Fonseca, a qual considera o único documento apto a fundamentar seu estudo, Cândito Pinheiro Koren de Lima tem como objetivo elucidar a composição do homem nordestino colonial. Destaca-
- Caesar Malta Sobreira, Doutor em Filosofia pela Universidade de Salamanca e professor de Antropologia na UFRPE, é escritor e membro da Academia Olindense de Letras, da Academia Maçônica de Letras do Recife, do Instituto Histórico de Olinda e do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano.
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se a persistência dos troncos raciais ou étnicos e religiosos relacionados às religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo), que, por caminhos misteriosos, compõem o mosaico etnocultural característico do homem nordestino.
O ambicioso projeto de Cândido é, através da Coleção Borges da Fonseca, agrupar em dez volumes o conteúdo da Nobiliarquia Pernambucana. Deste trabalho descomunal este é o primeiro volume, que é dedicado aos Albuquerque e aos diversos troncos muçulmanos khamitas, muçulmanos semitas, nativos indígenas e judeus que a dotação genética desta família alberga.
Na presente obra, que é imortal e que imortaliza seu autor, consta a afirmação segundo a qual “grande parte de Portugal atual e praticamente todo o Nordeste tem inserção desse sangue semita-judeu” que Jerônimo de Albuquerque herdou de Ruy Capão.
O autor afirma que os judeus estavam presentes na Ibéria desde a época das primeiras expedições fenícias, aumentando tal presença por ocasião das destruições do primeiro e do segundo templo de Jerusalém, e multiplicando-a durante o período muçulmano omíada da Espanha. Esta presença era relevante: a Ibéria possuía a maior concentração de judeus do mundo, transformando Espanha no país mais rico da época.
Além do caráter genealógico e histórico, o autor reivindica a dimensão sociológica, evocando o pioneirismo de Gilberto Freyre no que diz respeito à interpretação da contribuição das diversas matrizes étnicas, religiosas e culturais.
Assim, o autor estabeleceu uma proporção da nossa composição multiétnica: além do sangue ibérico quinhentista (por si só já bastante miscigenado), 80% da população nordestina colonial documentada por Borges da Fonseca – bem como a atual – possui sangue judaico, indígena e muçulmano-khamítico (magrebino) e muçulmano-semítico (árabe). Apenas 2% da população documentada também possui sangue negro subsaariano.
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Com tal herança multiétnica, Jerônimo de Albuquerque foi pródigo em espalhar sua dotação genética: “A partir de seus 36 filhos conhecidos, seu sangue permeou nossas veias, de modo que praticamente inexiste nordestino, com raízes aqui, que não seja dele descendente. Inclusive o autor deste tratado que ora vem a lume, e também deste que vos fala, herdeiro por via matrilinear das famílias Carvalho Brandão das Alagoas, aparentados com os Cavalcanti – dos quais o notório Tenório era primo em primeiro grau da minha avó Ernestina Malta Brandão; e também por parte da família Alves Feitosa, dos Inhamuns, por via patrilinear, presente neste livro ora apresentado.
Brites de Albuquerque, a esposa de Duarte Coelho, e seu irmão Jerônimo de Albuquerque eram terceiro ou quarto netos de Pedro Coelho, descendente do Rei Ramiro II, de León, com Artiga Alboazar, uma mulher khamita muçulmana, bisneta de Aboali, comandante berbere que acompanhou Tarik na conquista da Espanha em 711.
Ambos os irmãos eram representantes genéticos dos muçulmanos semitas (árabes), pois tinham como ascendente um membro da elite governante de Toledo durante o final de seu período islâmico. A cidade foi conquistada em 1085, pelo rei Afonso VI de Castela. Na ocasião, o rei o aprisionou e, depois, conseguiu sua conversão ao cristianismo, batizando-o com o nome de Fernando Afonso de Toledo.
Mas Brites e Jerônimo também possuíam ascendência judaica através de Ruy Capão, que fora físico e almoxarife da princesa Blanca (Urraca), filha de Afonso VII de Castela (1155 – 1214). Quando se casou com Afonso II de Portugal (1185-1223), Ruy Capão acompanhou a futura rainha dos portugueses. Realizadas as bodas, o rei Afonso II convenceu Ruy Capão a se converter, após o que foi pródigo em favorecê-lo inclusive concedendo-lhe o título de cavaleiro. Deste modo o sangue judeu se mesclou ao sangue cristão-velho nas veias do venerando Cisne Branco, o Noé Nordestino, disseminando o sêmen semissemítico por todo o Nordeste brasileiro.
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Gostaria de destacar um fato evocado por Cândido Koren, que havia sido consignado por frei Vicente Salvador na sua História do Brasil. Conta que o cristão-novo Vasco Fernandes de Lucena, origem de todos deste sobrenome no Nordeste e que se tornou alcaide-mor de Olinda, “era dotado de poderes mágicos”. Em certa ocasião, estando sitiado pelos índios ferozes, saiu da fortificação, desarmado, e caminhou em direção aos indígenas.
Conta nosso tratadista que: “No local onde hoje é a Sé de Olinda, defrontou com os da terra. Tomou então seu cajado, e traçou no chão um risco. Avisa que os que passassem deste marco cairiam sem vida. Sete ou oito [índios] apressam-se em ultrapassar o limite traçado e em atacar o Lucena. Imediatamente, ultrapassando o risco no chão, caíram sem vida. O fato, segundo o autor da nossa primeira história aqui escrita, fez com que os indígenas abandonassem o cerco, e partissem em louca correria.”
Ora, tratando-se de um cristão-novo é possível aventar a hipótes e que ele dominava os segredos da Cabala, cujos poderes eram utilizados pelos judeus, incluindo círculos mágicos de proteção. Tais técnicas eram de conhecimento da Inquisição, que as considerava atos de feitiçaria e punia seus praticantes com o fogo crepitante das fogueiras.
Fechando este parêntesis, retornemos ao Venerando Cisne Branco, tataravô de todos nós. Jerônimo de Albuquerque “deixou uma descendência imensa, praticamente todo o Nordeste”, acrescentando sangue indígena e negro ao que já tinha misturado em si. Tal é a composição racial básica do nosso povo, sendo o Nordeste a síntese pluriétnica de tantas gentes e genes.
Quanto ao sangue indígena, o autor proclama que ele está presente em todas as famílias e homens do Nordeste. Assim, “toda a elite documentada nordestina”, graças a Jerônimo de Albuquerque, possui sangue judeu por via de Ruy Capão; é tributário do sangue muçulmano-semita (árabe), através de Fernando Afonso de Toledo; e
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também tem sangue khamita muçulmano (berbere), graças a Artiga Aboazar.
Por outro lado, a “doutrina Afonso de Albuquerque” propiciou a “criação de um tipo original de civilização de características indo-portuguesa”. Tal civilização luso-tropical foi o resultado da prática de “política social de assimilação pelo casamento”, afirma Cândido Pinheiro.
A doutrina de Afonso de Albuquerque se baseava na fixação do homem ibérico à terra e, sobretudo, na união sexual com nativas. Jerônimo seguiu à risca tal doutrina: praticou abertamente a poligamia, sem preconceito étnico. Teve descendências com mulheres das três matrizes genéticas: brancas, negras e índias. Com elas teve 36 filhos e filhas que são os antepassados da maioria do povo nordestino.
Portanto, este livro sobre Jerônimo de Albuquerque ajuda a esclarecer o enigma da nossa policromia cultural. Antecipando a teoria da dádiva, preconizada por Marcel Mauss, e a teoria do tríplice intercâmbio (de palavras, mercadorias e mulheres) formulado por Lévi-Strauss, o Patriarca de Pernambuco e do Nordeste realizou a miscigenação que deu origem à metarraça do Homem Nordestino, cuja valorização foi realçada por Gilberto Freyre.
Este livro tem importância semelhante à coletânea Homo Brasilis, organizada pelo geneticista Sérgio Pena. Entretanto, a pesquisa de Cândido Pinheiro é mais específica: descreve o Homem Nordestino em sua dimensão genealógico-histórica, assim como Gilberto Freyre – sobretudo em Casa-Grande & Senzala – interpretou este mesmo homem através de uma perspectiva sociológico-antropológica.
Antes de terminar esta reflexão, quero dizer que senti um imenso prazer na leitura deste livro, ainda que por motivo quiçá egofílico e, por isso mesmo, muito especial. É que esta obra brônzea comprova a exatidão das teorias expostas no meu livro Nordeste Semita, agraciado com o prêmio nacional que leva o nome do mestre de Apipucos.
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Enfim, encerro esta apresentação parabenizando Cândido Pinheiro Koren de Lima, autor de tão magnífica obra-prima, por sua imensa e inestimável contribuição ao povo e à cultura pernambucana; e louvando Sonia Freyre, presidente da Fundação Gilberto Freyre, pela ousadia de publicar este livro definitivo sobre o homem do Nordeste brasileiro.
Muito obrigado!