OS MARRANOS

Em minha opinião, em Israel não se estuda suficientemente a história do judaísmo na Espanha e em Portugal, a metade da Península Ibérica. Aprende-se, no entanto, sobre a primeira e segunda “Idade do Ouro”, a expulsão da Espanha e o reassentamento dos expulsos no norte da África, na Itália e, obviamente, nos países então sob domínio do Império Otomano.

O ladino, antigo castelhano, uniu-os, e até hoje se mantém o estudo dessa língua e de sua literatura em universidades de Israel e de muitos outros países. Receitas desse período aparecem em livros de culinária e na internet. Um sem-número de pesquisas foram e continuam sendo feitas a respeito da Diaspora dessas comunidades.

Ainda assim, falta algo. O retrato do chamado “exílio espânico” não está completo, uma vez que esquecemos completamente dos irmãs e irmãos que foram deixados para trás no status de “cristãos-novos”.

Desejo contar a vocês sobre um fenômeno maravilhoso, no qual judeus que foram forçados a se converter ao cristianismo de forma contundente e esmagadora secretamente mantiveram a essência judaica. Sua história é incrível. Sua insistência em manterem-se dentro do judaísmo, preservando os costumes ancestrais pelo maior tempo possível e em razão disso enfrentando as ameaças da Inquisição (sobre as quais eu me aprofundarei em seguida), é uma das mais heróicas histórias do povo judeu e deve ser estudada extensivamente em todas as estruturas educacionais existentes.

Lembramos e relembramos, com razão, dos hasmoneus e de Bar Kochba, dos suicidas de Massada e dos da fortaleza de York, Inglaterra, durante as Cruzadas, os heróis do gueto de Varsóvia e a bravura da paraquedista Hannah Szenes e seus companheiros.

Mas é importante também lembrar que o heroísmo de nossos irmãos marranos manteve-se aceso por mais de 400 anos!

Contarei a seguir essa história de forma ordenada.

Primeiramente, por que atuar na conversão de pessoas? Por que importa aos outros aquilo que uma pessoa acredita e a fé que cultua?

“Fanatismo religioso” é a resposta a essa pergunta. A ele assistimos ainda hoje, nas tentativas islâmicas de dominar a Europa. O mesmo observamos dentro de nosso povo, quando uma comunidade rejeita o judaísmo de outra.

O antissemitismo, ou ódio aos judeus, começou antes mesmo dos tempos de Jesus. A base desse sentimento origina-se em um fenômeno conhecido como “xenofobia”, que significa o medo dos hábitos “estranhos” do estrangeiro.

Os judeus eram diferentes em seus costumes, e não os escondiam. Pelo contrário. A observância do Shabat era incompreensível aos vizinhos, que trabalhavam do nascer ao por do sol. A cashrut era um preceito incompreensível em um mundo flagelado pela eterna fome. As matsot de Pessach eram outro motivo de estranhamento. Há até mesmo judeus que, nos dias de hoje, não entendem sua natureza. Os judeus preferiam morar em bairros fechados, porque lá contavam com uma sinagoga, um micvê e um “cheder”, no qual se ensinavam as crianças. Muitos mencionam que eles  viam a si mesmos como “o povo escolhido”.

A tudo isso se somava o ódio dos cristãos, que acusavam os judeus de terem instigado os romanos a crucificar Jesus e de se recusarem a reconhecê-lo como o messias universal. As pressões existiam apesar de a “Conferência de Nicéia” em 325 e de São Agostinho, bispo de Hipona, terem proibido os judeus de se converterem ao cristianismo (mesmo que o fizessem por vontade própria).

Os judeus chegaram à Espanha há cerca de dois mil anos e lá se estabeleceram muito bem. Quando os muçulmanos conquistaram o reino no século 8, eles foram recrutados para atuar especialmente na administração e arrecadação de impostos. Aquela foi a primeira “Era de Ouro”. Em seguida, a maré virou e os cristãos retomaram a região no evento que ficou conhecido como “A Reconquista”. Os judeus foram novamente chamados, dessa vez para ajudar a governar o país e a controlar a população muçulmana que permaneceu ali – essa foi a segunda “Era de Ouro”.

Na Espanha, os judeus puderam se fortalecer e não foram empurrados para nenhum outro exílio. Além de apoiar as autoridades, eles desenvolveram a poesia hebraica, a interpretação bíblica, traduziram a literatura científica e clássica da Grécia e de Roma, as quais floresceram na Espanha. Os judeus eram ministros das Relações Exteriores, ministros de guerra, grandes doutores e até mesmo soldados.

Não quero me estender a respeito do século 14. É suficiente dizer que foi um século de crises – incluindo a religiosa. No meio daquele século, a peste negra abateu um terço de todos os habitantes da Europa. Houve uma secção na Igreja, resultando no reinado simultâneo de dois ou até três papas.

O clima geral era de medo e de convulsão. No meio desse momento desconfortável, começaram a se elevar na Espanha as vozes de pregadores fanáticos, que acusavam os judeus de tudo o que acontecia, incluindo do envenamento de poços d´água dos cristãos (uma vez que os judeus mantinham muito mais regras de higiene do que o resto da população, eles foram menos afetados pela epidemia).

Em 1391, terríveis ataques foram realizados contra os judeus; centenas de comunidades foram dizimadas e dezenas de milhares de judeus, forçados à conversão ao cristianismo.

O Início do “Fenômeno dos Marranos”

Os marranos, ou “cristãos-novos”, como foram apelidados pelos “cristãos-velhos”, tentavam, fora de seus lares, se comportar integralmente como cristãos. Suas casas estavam cheias de cruzes e ícones cristãos. Iam à igreja todos os domingos e feriados, faziam suas confissões aos padres (as quais ensaiavam, para não deixar nada escapar em sua fala), abstinham-se de comer carne às segundas, quartas e sextas-feiras de acordo com o costume cristão, mandavam seus filhos para estudar com freiras etc.

Mas eles nunca de fato aceitaram sua condição, e praticavam “pequenas vinganças” secretas contra a igreja que se sobrepunha a eles. Por exemplo, antes de entrarem na igreja, diziam para si mesmos: “No credo um pau; no credo um piedrano; no credo um vinho”. Ou seja, não acreditavam no pão, referindo-se ao “pão sagrado”, na pedra, que eram as estátuas dos santos e a bacia batismal, e no vinho, que era o símbolo do sangue de Jesus. Quando passavam pela pia batismal, viravam o rosto. E quando o padre passava diante da fila com a cruz nas mãos, eles esfregavam os olhos, como se estivessem tentando se livrar de ciscos.

Quando distribuíam a hóstia, a qual simboliza o corpo de Jesus, eles a mantinham na boca até que tivessem a oportunidade de secretamente cuspi-la. Mais tarde, os espiões da Inquisição passaram a segui-los para supreendê-los no momento em que o fizessem.

Paralelamente, mantinham sua vida judaica em suas casas. Guardavam a cashrut na medida do possível, evitavam trabalhar aos sábados, iam à micvê (não às sextas-feiras, para não levantar suspeitas), circuncidavam os filhos e celebravam bar-mitsvá. Também jejuavam no Yom Kippur, comiam matsot em Pessach etc. Quem os ajudava em todas essas atividades eram aquels que não aceitaram a conversão e continuavam vivendo aberta como judeus.

O Aspecto Social

Tudo isso despertou a ira da comunidade local e a exasperação social foi, naquele momento, maior do que a religiosa. Afinal, os cristãos acreditavam que, ao converterem-se ao cristianismo, os judeus abririam uma janela para o mundo. Convertidos, eles estariam livres de seu status cheio de limitações, podendo viver onde quisessem, casar com as filhas dos “cristãos-velhos”, incluindo de famílias nobres etc. No entanto, eles continuavam se casando entre si. Os marranos também poderiam se movimentar livremente e imigrar para locais como França, Inglaterra, Países Baixos (hoje Holanda e Bélgica) e Alemanha, de onde os judeus haviam sido expulsos há tempos.

Um fluxo migratório foi iniciado. Cerca de 100 mil judeus partiram antes mesmo da expulsão; milhares de “cristãos-novos” também se mudaram para os países citados anteriormente. Uma vez que a maioria dos emigrados eram comerciantes, eles se instalaram principalmente em cidades portuárias como Baiona e Nantes na França, Antuérpia, na Bélgica, Roterdã e Amsterdã, na Holanda, e Hamburgo, na Alemanha.

Essa transição não se deu de forma simples. As populações locais se recusaram a aceitar o status e as novas oportunidades que se abriam aos marranos, muito embora eles tivessem sido forçados à conversão. Havia quatro bispos de origem judaica na Igreja. Nos mosteiros, tanto para homens quanto para mulheres, viviam “ex-judeus” em sua maioria – se não todos –, que encontraram ali uma forma de, isolados, continuar atuando como judeus sem serem perturbados. O mosteiro em Guadalupe destacou-se particularmente. De uma hora para outra, havia coronéis de origem judaica no exército, além de proprietários de navios e grandes comerciantes.

A população ficou furiosa com essa situação. A tensão social aumentou a ponto de surgirem tumultos dentro das cidades e aldeias, incitados por padres invejosos. Os recém-casados Isabel e Fernando queriam a paz social em seus reinos, Aragão e Castela, e tentaram de todas as formas resolver o conflito. Cogitaram, inclusive, enviar todos os judeus para Gibraltar.

Antes do casamento real, houve uma mudança significativa em relação aos cristãos-novos, evidente com o estabelecimento em Toledo da “Lei da Purificação do Sangue”, em 1449. O povo de Israel era considerado o “povo escolhido” antes da aparição de Jesus; mas depois disso, o cristianismo passou a ser visto como o herdeiro natural do judaísmo. Portanto, o judeu que era batizado e declarava “eu acredito” publicamente, tornava-se cristão na alma. Por causa das razões que mencionei, o decreto de Toledo determinou que não era suficiente que a pessoa começasse a se comportar como cristã – era necessário examinar seu passado em “carne”. Ou seja, o convertido só seria considerado cristão caso provasse que não haviam judeus entre suas quatro gerações anteriores. Só nessa situação ele seria aceito como um cristão completo e estaria livre de diversas limitações.

A expulsão dos judeus da Espanha ajudou-os justamente a preservar seu judaísmo. Os reis católicos acreditavam que, caso os judeus fossem expulsos, os marranos desligariam seus laços da fé judaica e se apegariam à sua nova religião. E realmente, na famosa carta de deportação assinada no Palácio de Alhambra em Granada, está citado explicitamente que a deportação acontecia em função da influência dos judeus “que lhes dizem (aos marranos) a comida que devem comer e que não devem comer, os jejuns e as festas…”

A Inquisição

Antes da expulsão houve medida na Espanha contra os marranos: em 1480, o Santo Ofício da Inquisição foi estabelecido.

O nome significa “investigação” ou “checagem”, e entrou em vigor na França a partir do século 13 contra um grupo que vivia na cidade de Albi e professava o cristianismo de forma diferente do estabelecido pelo papa. Eles foram exterminados em confrontos crueis. A partir desse evento, manteve-se no cristianismo católico uma estrutura voltada a checar se alguém dessa corrente permanecia em atividade naquele país.

Quando os rumores do comportamento dos “cristãos-novos” que secretamente mantiveram sua prática judaica se espalharam na Espanha, os reis católicos pediram ao papa permissão para estabelecer em seu reinado tal instituição para esclarecer essa questão. Após anos de deliberações, a Inquisição foi estabelecida.

Os interrogatórios eram conduzidos com extrema crueldade, seguindo o estilo próprio daqueles tempos. Sabemos que grandes e aparentemente “iluminados” reis, como Ivan o Terrível, na Rússia, ou a “primeira” Elizabeth, na Inglaterra, ordenavam a tortura de seus oponentes. A Inquisição garantia ao suspeito a oportunidade de adivinhar quem o havia denunciado. Caso estivesse correto, o suspeito era liberado, pois os inquisidores não queria que a organização se tornasse instrumento de vinganças pessoais. No entanto, quando havia mais de um denunciante e o suspeito identificava apenas um, a investigação prosseguia. Os interrogatórios eram bastante duros, tanto em termos mentais quanto físicos, e cada movimento dos acusados era registrado por um funcionário que acompanhava a sessão.

Graças a esses funcionários experientes e suas narrativas cheias de detalhes, hoje sabemos muito sobre os marranos e seus costumes!

Na noite da expulsão, cerca de setenta mil judeus se converteram. Alguns deles eram pessoas mais velhas que temiam as dificuldades da viagem ao exílio; outros não queriam perder seu trabalho ou tinham medo do desconhecido. Houve aqueles que estavam bem estabelecidos e preferiram abandonar definitivamente o judaísmo.

Quero enfatizar que nem todos os que foram forçados a se converter ao cristianismo mantiveram seu judaísmo. Não sabemos ao certo quantos deixaram o povo judeu após o estabelecimento da Inquisição. E não apenas isso – ocorrreu também o fenômeno da “conversão rancorosa”, na qual pessoas usaram seu conhecimento judaico para perseguir seus irmãos. Não há explicação para isso – talvez eles buscassem fortalecer seu novo status e receber certos “pontos de crédito” na nova sociedade em que ingressavam.

Quadro em memória dos assassinados pela Inquisição na cidade de Castelo Branco, Portugal.

O temor de sempre

A vida dos judeus mudou por completo e já não era mais possível agir livremente. Investigadores e espiões da Inquisição estavam por toda parte e suas sentenças eram severas. A pena para a maioria das infrações era a morte na fogueira. Até o início das expulsões, cerca de 800 judeus foram queimados apenas na grande cidade de Sevilha.

Em Portugal, onde a conversão em massa já havia sido iniciada em 1497 pelo rei D. Manuel I, toda a comunidade foi convertida. Com isso, tornou-se mais fácil para eles permanecerem judeus em segredo porque se apoiavam mutuamente. A maioria dos deportados da Espanha estabeleceu-se em áreas montanhosas perto das fronteiras, na esperança de que os espanhois se arrependessem e os convidassem a voltar. A localização das aldeias, em áreas remotas, deu-lhes a esperança de estarem longe o suficiente longe da sede da Inquisição. No entanto, seus mensageiros os procuraram até mesmo nos lugares mais distantes.

Com a descoberta da América e o início da migração civil, muitos “cristãos-novos” se uniram à onda. Pensavam que a Inquisição não os alcançaria além-mar, e acreditaram que nas novas terras poderiam praticar seus costumes sem preocupação. Mas os braços da terrível instituição foram estabelecidos muito rapidamente, tanto no Brasil quanto no México, no Peru e no Uruguai, e as perseguições e fogueiras logo começaram a acontecer. A Inquisição em Portugal só veio a ser estabelecida em 1536, atrasada devido ao grande esforço e dinheiro doado pelos marranos ao Tribunal Papal, cordenado por Francisco Mendes. A Inquisição de Portugal foi ainda mais cruel e mais dura do que em sua vizinha Espanha.

Não havia uma única família judia que não contabilizasse o assassinato de pelo menos um de seus membros. Conhecemos a história de uma mãe, por exemplo, que foi queimada no México, um de filhos também, 20 anos depois, em Coimbra, e um de seus netos em Lisboa, nove anos mais tarde. Ofensas relativamente menores conduziram à fogueira – como ocorreu com um madereiro acusado de lavar roupas todas as noites de sábado (após o Shabat) no rio Congo, na África. Uma mulher que salgava meticulosamente a carne antes de cozinhá-la teve o mesmo fim. Isso depois que outras pobres pessoas foram torturadas de forma terrível a fim de obter dela a confissão desejada.

Lista de Nomes

Os judeus forçados à conversão tiveram que escolher um nome cristão e “livrar-se” de seu nome hebraico. Podemos distinguir vários grupos principais.

A primeira escolha era, claro, de nomes cristãos, como “Santa Fé” (di Santa Fe), Jesus, Santo ou Santos. O segundo grupo optou por nomes de árvores e flores: Oliveira, Pinto e assim por diante. Havia um grupo que nomeava segundo características físicas, como Moreau ou Moreno (face morena). Outro grupo traduziu seu nome judaico para um som similar. Por exemplo, Matityahu se tornou “Matos” (matós, em hebraico). Houveram aqueles que adotaram um nome para honrar o padrinho que os acompanhou na cerimônia de batismo.

Hoje, a partir dos arquivos da Inquisição, conhecemos centenas de nomes de pessoas que são supostamente de origem marrana. Estes foram usados por seus descendentes como parte da validação de sua conexão com o passado judaico. Como seus ancestrais costumavam se casar entre si, a maioria dos filhos tem vários sobrenomes, todos de alguma forma indicando a conexão com o povo judeu.

Trecho de lista de nomes.

A Insurreição

Os marranos não esmoreceram e se rebelaram contra os decretos de várias maneiras. Sabe-se do plano do assassinato de um emissário dos reis católicos pela corte papal durante as discussões sobre o estabelecimento da Inquisição. Na cidade de Sevilha, um grupo de marranos liderados por Ben Soussan foi organizado. Sua filha, que se apaixonou por um jovem cristão-velho, comentou sobre o grupo, e todos foram executados.

A maior reação veio, claro, de Dona Gracia Mendes diretamente contra o papa Paulo IV, em resposta à execução de 25 marranos em Ancona, na Itália. Ela convocou um boicote comercial e econômico ao porto para prejudicar a corte papal, a qual usufruía dos lucros de suas atividades. O boicote foi suspenso principalmente devido a disputas entre as partes envolvidas – e Dona Gracia desistiu.

Ainda assim, há de se ressaltar sua enorme coragem.

Muitos marranos apoiaram Antônio, que reivindicou a coroa portuguesa em 1580, contra o rei da Espanha, Filipe II. Marranos que atuaram como piratas no Mar do Caribe, incluindo o rabino Yaakov Koriel, foram parceiros no esforço de lutar contra a Espanha como punição pela expulsão, roubando das embarcações espanholas o ouro que a Coroa furtava da América do Sul.

As Mulheres dos Marranos

O fato de haverem ainda hoje milhões de descendentes que continuam a observar os costumes do judaísmo deve-se às mães que mantiveram as tradições por centenas de anos.

Os homens geralmente trabalhavam fora e até mesmo emigravam para outros países em busca de subsistência. Quem ficou em casa – ou seja, as mulheres – criou os filhos, manteve a alimentação casher e a conduta judaica, contou às crianças sobre suas raízes e lhes ensinou a observância dos mandamentos.

As mães se preocuparam em inventar receitas especiais, como linguiças de frango que no entanto cheiravam como as de porco, para enganar as “gentis vizinhas” que vinham cheirar suas panelas. Ao mesmo tempo, apesar do perigo, mantiveram o cuidado de salgar a carne, a fim de remover vestígios de sangue.

Elas decoraram suas casas com ícones e crucifixos, mas determinaram que a figura crucificada seria direcionada para a parede e só movida por uma das crianças quando os convidados estivessem prestes a chegar. Elas mantinham a boa educação cristã, incluindo orações na hora de dormir, e ao mesmo tempo ensinavam o alfabeto hebraico aos filhos, fazendo-os memorizar as preces judaicas. Elas organizaram os casamentos “duplos”, abertamente cristãos e secretamente judaicos. Elas respondiam, com inteligência e lógica, às perguntas de outras mulheres, uma vez que, a partir da segunda geração, já não havia entre eles a figura de rabinos.

Outros Costumes

Há vários costumes judaicos que encontramos entre seus descendentes atualmente. Um deles, bastante comum entre os marranos e também entre judeus de outros exílios, é evitar contar as três estrelas cujo aparecimento sinaliza o final do Shabat.

Explico. O dia sagrado do judaísmo era guardado pelos marranos. Mas caso um adulto saísse de casa para checar se ele havia terminado, certamente seria notado pelos vizinhos. Por isso treinaram as crianças para fazê-lo. No entanto, elas costumavam contar com a ajuda de um dos dedos. Para evitá-lo, os adultos lhes diziam que, caso apontassem para cima, um raio viria da lua e lhes causaria uma ferida que nunca cicatrizaria.

Outro costume era acender as velas sob a mesa, sobre o qual estava colocada uma grande toalha, ou dentro de um pequeno armário de madeira na parede ou no porão. Os homens morimbundos eram posicionados com o rosto virado para a parede, de forma que não respondessem ao padre o qual eram obrigados a chamar para ouvir sua confissão final. Também o faziam para que, em delírio, não irrompessem com um “Shemá Israel” em alto brado, o que poderia colocar em perigo toda a família.

Também evitava-se posicionar qualquer coisa que resultasse no formato da cruz: talheres cruzados, uma perna encima da outra ou aperto de mãos de forma cruzada.

As casas eram limpas da porta para dentro. Milhões de mulheres varrem até hoje a casa da porta de entrada em direção ao centro, recolhendo ali a sujeira. Isso se explica pelo fato de que, ao se converterem, as famílias foram obrigadas a remover a mezuzá das portas – escondendo-as sob o piso sob a porta – e não queriam passar por cima dela com a sujeira recolhida. Ainda hoje, há muitos homens no Brasil que param à porta, ajoelham-se como que para apertar os cadarços, beijam os dedos e os tocam no chão. Em outras palavras, beijam a mezuzá.

No túmulo de um marrano, havia uma segunda cruz gravada sobre a pedra para demonstrar “devoção”. Um cristão comum só incluía uma, no topo da lápide, enquanto os marranos gravavam uma outra horizontalmente, demonstrando sua “devoção ao cristianismo”.

Até hoje, as casas dos marranos são repletas de ícones e estátuas, e também de chaves de tamanhos diversos em diferentes lugares. Era costume dos exilados espanhois trazer consigo as chaves de casa com eles, acreditando que um dia a ela voltariam.

Túmulo de marrano com uma cruz adicional entalhada

As cruzes eram espalhadas por todos os locais da casa. Mas a figura de Cristo crucificado ficava virada para trás.

Chave escondida em gaveta

Os absurdos dos marranos

Eles agiram conscientemente e mantiveram tradições sobre si e seus filhos – o quanto foi possível. Vemos hoje o resultado disso, um fenômeno sem igual.

As casas dos marranos eram decoradas como casas cristãs, e do lado de fora eles tomavam o cuidado de recortar os cantos do batente da porta de entrada. Não apenas isso, eles marcavam a parede externa junto à porta com cruzes especiais, diferentes do padrão da cruz cristã. Foram encontradas centenas de cruzes diferenciadas no antigo bairro judeu da cidade da Guarda, no norte de Portugal. Isso é bastante estranho e surpreendente, afinal eles se preocuparam em “assimilar” o mundo cristão. Se eles quisessem simplesmente demonstrar sua devoção, utilizariam a forma de uma cruz regular. Mas eles levaram consigo esse costume para todos os lugares onde chegaram fugindo da Inquisição, sempre esculpindo essas cruzes especiais. Na ausência de uma resposta, só posso imaginar que isso é uma espécie de desafio aberto contra seus perseguidores. Se alguém puder oferecer uma explicação mais razoável, ficarei feliz em ouvi-la.

Cruzes “especiais”

Batente com cantos

Outro absurdo era sua própria percepção em relação ao judaísmo.

Quero frisar novamente: eles sofreram terrivelmente! O tempo inteiro viviam sob o medo. Não havia lugar para se abrigar ou relaxar. Mesmo dentro da casa, onde haviam outros marranos, era impossível ter a certeza de que não eram informantes. Cada movimento de mão, contração facial quando o sino da igreja tocava, palavra desnecessária ou ausente poderia ser motivo para a acusação de heresia. Ainda assim, essas pessoas preciosas acordavam todas as manhãs e diziam para si mesmas: “Eu continuo sendo judeu!”

Seria tão mais fácil escapar e desaparecer. Afinal, eles tinham nomes cristãos. Seriam capazes de chegar a alguma aldeia remota no México ou Colômbia e sumir do mapa. Não o fizeram apenas consigo mesmos – vivenciar essa enorme luta indo contra seu próprio instinto básico de sobrevivência – como conscientemente colocaram também a seus filhos nessa situação de perigo. Podemos imaginar os homens conjecturando: “Eu não romperei com o judaísmo. Vão me prender e me queimar por isso, se for esta a vontade de Deus”. Mas seus filhos seriam completamente distanciados de tudo isso. E eles foram cuidadosos, geração após geração. Ou melhor, ao longo de mais de vinte gerações, enquanto existiu a Inquisição, a qual foi desativada em 1821. Duzentos anos depois, os descendentes ainda observam os mesmos mandamentos! A mensagem dos pais foi poderosa a esse ponto.

Mesmo sob essas condições, essas heroínas e heróis sentiam intimamente a tristeza por não exercerem “suficientemente” seu judaísmo. Continuavam com a sensação de pecado e desculpando-se o tempo inteiro – não em relação ao cristianismo, mas ao judaísmo! Por isso, nas noites de sexta-feira, quando o patriarca da família voltava de suas viagens de negócios, eles não comiam carne, o que denotaria uma refeição festiva, mas peixe ou vegetais. O mesmo acontecia com a refeição de Shabat, muitas vezes à base apenas de legumes. Muitas cartas de marranos encontradas trazem pedidos e mais pedidos de perdão, uma vez que nessas viagens, ocasionalmente, os homens não podiam deixar de infringir as leis judaicas, até mesmo ingerindo por vezes carne de porco.

Com relação ao seu estado mental, importante mencionar o seu enorme anseio pela vinda do messias, que os tiraria desta difícil situação. E eles tanto comemoraram quando David Reuveni chegou a Lisboa em 1526 – em seu traje branco e nobre, acreditaram que fosse ele o messias que chegava para salvá-los.

A História dos Marranos Continua

Como escrevi anteriormente, eles se instalaram na Europa para buscar o seu sustento, especialmente em cidades portuárias. Estabeleceram suas sinagogas em porões e tentaram arduamente manter a prática judaica em segredo. O que foi extremamente difícil de se fazer – ou talvez a distância da Inquisição os deixasse descuidados. De qualquer forma, mesmo que sua identidade judaica fosse conhecida, sua importância como comerciantes bem-sucedidos e sua relevante contribuição para a economia de seu local de residência fizeram com que as autoridades fechassem seus olhos. Assim, por exemplo, na cidade de Baiona, no sul da França, o bairro dos marranos se chamava San Esperi, “Espírito Santo”, onde era permitido que vivessem. Conhecemos a “Sinagoga Portuguesa” em Amsterdã, que foi estabelecida depois que a comunidade declarou abertamente estar “retornando ao judaísmo”.

Os marranos utilizaram seu status duplo adequadamente. Eles usaram sua identidade e nome cristãos, e muitos deles até mesmo arriscaram um retorno à Espanha. Assentaram-se como padres na cidade de Livorno, na Itália, e de Izmir, na Turquia, além de outras localidades. Em outros casos, circulavam nas comunidades judaicas com seu nomes e identidade hebraicos.

Em Venezahavia um centro para o retorno dos marranos à fé judaica; mais tarde, em Amsterdã, foi fundada uma instituição semelhante. No entanto, os anussim que estavam acostumados a viver como judeus, cumprindo os mandamentos que fossem possíveis – sem incluir a circuncisão –, não se viam obrigados a voltar à prática de todos os mandamentos de forma estrita. Isso gerou conflitos – mas não vou entrar nesse tema.

Os Descendentes Atuais

O tema dos marranos é conhecido há menos 150 anos. Muitos estudos acadêmicos foram escritos sobre eles, assim como muitos livros (a maioria deles teóricos, outros ficcionais). Por exemplo, Casa Aguilar, do rabino Lehman, ou Vale dos Cedros, de Grace Aguilar, descendente daquela família.

Nesta época, marranos ainda em atividade foram descobertos – com a chegada do exército napoleônico ao norte de Portugal, foram localizadas aldeias escondidas a norte e leste do país e houve a intenção de “trazê-las à luz”. Mas a expulsão dos franceses e a volta do reinado inibiram as mudanças. No final da Primeira Guerra Mundial, o capitão português Barros Basto voltou ao seu país após participar de batalhas na França, onde descobriu acidentalmente seu passado judaico.

Barros Bastos

Ele também chegou às aldeias no nordeste de Portugal e começou a encorajar os marranos a retornar ao judaísmo. No entanto, a ditadura de Salazar não gostou dessa inciativa e encarou-a como uma rebelião. Ela removeu Basto do exército e ameaçou os marranos, de forma a conter a movimentação. Assim, eles novamente se fecharam. Naquela época, um engenheiro judeu polonês chamado Samuel Schwartzchegou à vila de Belmonte, em Portugal, e escreveu sobre os marranos que havia encontrado ali. Seu contemporâneo Benjamin Mintz, que mais tarde se tornou membro do Knesset (Parlamento israelense), também os descobriu e relatou sua experiência. Mas a ditadura os havia assustado tanto que, somado ao medo que se tornou “genético” na Inquisição, eles retornaram às suas casas e a seu mistério.

Nos últimos anos, está havendo um fenômeno novo e fascinante no povo judeu. Com a ajuda da Internet, muitos estão descobrindo que seus costumes estão ligados ao seu passado judaico – e eles estão animados com essa notícia. A web está cheia de histórias pessoais sobre como se deu a descoberta de suas origens e a emoção que sentiram com ela.

Hoje, estou ligado a cerca de 160 comunidades diferentes que lidam com o passado judaico, os líderes religiosos e a especial conexão destes com a Terra de Israel.

Considero todos como irmãos e irmãs e aspiro ajudá-los a retornar a nosso povo.

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