A Sinagoga Shaarê Tikvá foi inaugurada em Lisboa, no dia 18 de maio de 1904. Era a primeira a ser construída após o longo período desde as conversões forçadas, de 1497, e dos 300 anos da Inquisição.
Nesta sinagoga, que segue o rito ortodoxo português, os judeus de Lisboa têm celebrado todos os momentos importantes da vida judaica. Ao longo de seus pouco mais de 100 anos de existência, a Shaarê Tikvá testemunhou inúmeros fatos marcantes na história judaica e na de Portugal. Foi nela que os judeus de Lisboa comemoraram o nascimento da República e pediram pelo fim da 1ª. Guerra Mundial. Foi lá, também, que se juntaram a refugiados de toda a Europa para rogar a D’us por seus irmãos, de todo o continente, que estavam nas mãos de Hitler.
Entre suas paredes exultaram com a criação do Estado de Israel e rezaram por seus jovens soldados na frente da batalha. Nela mostraram a eterna gratidão de nosso povo a Aristides de Sousa Mendes, cônsul de Portugal em Bordéus, durante a 2a Guerra, por se ter recusado a seguir as ordens do governo de Salazar, concedendo vistos a judeus que desejavam fugir da França. Em seus muros se evocaram os 500 anos do Édito de Expulsão e se orou em memória das vítimas da Inquisição, e em 2002 se celebrou o centenário da Shaarê Tikvá, em hebraico, “Portões da Esperança”.
O renascer de uma comunidade
A história da Shaarê Tikvá começa no início do século 19, com a chegada a Portugal de famílias de judeus sefaraditas, em sua maioria negociantes, vindas do Marrocos e da região de Gibraltar. Pode-se datar de 1801 a instalação dos primeiros judeus em Portugal, após o Édito de Expulsão de D. Manuel. Trata-se de famílias judias de Gibraltar, que, aproveitando-se do enfraquecimento da Inquisição devido à legislação pombalina – do Marquês de Pombal, se estabelecem em Lisboa como súditos ingleses. Alguns de seus nomes ainda evidenciavam a origem ibérica. Estas famílias podem ser consideradas o embrião da atual comunidade judaica de Lisboa. E, por volta de 1819, estabelecia-se o primeiro núcleo de judeus vindo do Marrocos.
Dotados de alto nível cultural, os recém-chegados, do Marrocos e de Gibraltar, dominavam vários idiomas, entre os quais o hebraico litúrgico, o árabe, o inglês e a haquitía, dialeto judeu-hispano-marroquino. A exemplo de outros núcleos na diáspora, os que aportavam às terras lusitanas mantinham inúmeros contatos comerciais e familiares em outras regiões do mundo. Ambas as características facilitaram sua ascensão econômica, bem como sua integração na sociedade portuguesa.
Iniciando o processo de adaptação à nova terra, os judeus procuraram rapidamente organizar a vida comunitária, com a criação de locais para oração, serviços de Shechitá (abate da carne segundo a Halachá) e também um campo santo onde enterrar seus mortos.
Contudo, a comunidade ainda não tinha existência legal, pois a Carta Constitucional da Monarquia Portuguesa, de 1826, reconhecia apenas o catolicismo como única religião permitida aos cidadãos portugueses. Não podemos esquecer que apenas cinco anos tinham transcorrido desde a extinção pelas Cortes portuguesas do Tribunal da Inquisição. Apenas aos estrangeiros era permitida a prática de outras religiões, razão pela qual, à época, falava-se em “colônia israelita”, assim como se falava da inglesa ou da alemã.
Apesar de considerada “uma colônia estrangeira”, a comunidade foi-se estruturando, aos poucos, principalmente depois da segunda metade do século 19. Na época viviam em Lisboa de 500 a 600 famílias, atendidas por um rabino e três sinagogas. As instituições judaicas, que tinham de ser aprovadas pelo Governo Civil, eram constituídas sob a forma de associações autônomas ou fundações privadas, geralmente dirigidas por senhoras. Estas instituições desempenharam um papel decisivo na união e organização do judaísmo português.
Assim, em 1865, foi criada a entidade “Amparo dos Pobres”, por iniciativa de Simão Anahory. Em 1916, a entidade amplia suas atividades e funda o “Hospital Israelita”, que tão importante papel desempenharia no apoio aos refugiados judeus. Em 1892 foi a vez da “Guemilut Hassadim”, fundada por Moses Anahory, para prestar apoio espiritual aos necessitados e cuidar dos enterros.
Em 1868, o governo de D. Luís autoriza a instalação de um cemitério judaico na antiga Calçada das Lajes (atual Afonso III), em funcionamento ainda hoje. Foi o primeiro passo para o reconhecimento oficial da “Comunidade Israelita de Lisboa”, o que ocorre somente sob o governo republicano, em 9 de maio de 1912. Precisamente 416 anos desde o Édito de Expulsão e um século desde extinta a Inquisição.
Nesse mesmo ano foi criada a “Associação de Estudos Hebraicos Ubá le-Zion”. Em 1929 foi a vez da “Escola Israelita”, que chegou a ter 100 alunos. A edição de um boletim, a organização de uma biblioteca, em 1915, e a fundação da “Associação da Juventude Israelita Hechaver”, em 1925, são outros tantos marcos na consolidação da Comunidade Israelita de Lisboa.
A imigração asquenazita começa em 1920 e se acelera após a ascensão do nazismo, na Alemanha. Neutro durante a 2ª Guerra Mundial, Portugal concedeu vistos de trânsito a cerca de 100.000 refugiados, provocando o afluxo de dezenas de milhares de judeus, à espera de um país que os admitisse. Os poucos que se estabeleceram em terras lusitanas alteraram o perfil da marcadamente sefaradita comunidade de Lisboa.
Durante a 2a Guerra, os judeus de Portugal tiveram um papel importante no apoio aos refugiados, através da criação da Comissão Portuguesa de Assistência aos Judeus Refugiados em Portugal (Comassis). Financiada pelo Joint e outras instituições judaicas internacionais, a comunidade manteve a “Cozinha Econômica” e o “Hospital Israelita”, fornecendo diariamente alimentação, vestuário e atendimento médico aos refugiados. Aquela terra que, no passado, tanta dor e sofrimento causara a tantos judeus, tornava-se símbolo de esperança e vida.
Até a década de 1960, a comunidade judaica da capital se manteve demograficamente estável; mas, com a criação do Estado de Israel e a eclosão da chamada Guerra Colonial, algumas famílias emigraram, principalmente para Israel.
A abertura política pós-Revolução de Abril e, posteriormente, a eliminação das barreiras alfandegárias, com a entrada de Portugal na União Européia, têm feito chegar ao país, nos últimos anos, judeus originários de diversos países da Europa e mesmo do Brasil. Atualmente a comunidade judaica de Lisboa conta com cerca de 300 membros registrados. Dos que ainda vivem em Lisboa, mais da metade são descendentes dos judeus que chegaram ainda no século 19.
A Sinagoga Shaarê Tikvá
Ao longo do século 19 a “colônia israelita” de Lisboa tentou inúmeras vezes erguer uma sinagoga. Finalmente, em março de 1897, os judeus de Lisboa conseguiram superar as dificuldades ocasionadas pela falta de reconhecimento oficial e, reunidos em Assembléia Geral, criam uma comissão de edificação da futura Shaarê Tikvá. Logo a seguir, em agosto de 1901, compram um terreno, à rua Alexandre Herculano, para este fim.
Projetada por Miguel Ventura Terra, um dos maiores arquitetos da época, a sinagoga, a maior de Portugal em número de assentos, teve que ser construída atrás de um quintal murado, pouco visível da rua, já que apenas as igrejas católicas tinham permissão de ser construídas com fachada para a via pública. Finalmente, em 25 de maio de 1902, Abraham E. Levy coloca a pedra fundamental e, dois anos depois, em 18 de maio 1904, é festivamente inaugurada a Shaarê Tikvá.
O suntuoso edifício de dois andares fora projetado segundo uma planta retangular. Na parede oposta à entrada está o Hechal que se caracteriza por sua harmonia e sobriedade. Há também uma galeria sustentada por 8 colunas de estilo clássico, destinada às mulheres.
Desde sua inauguração, em 1904, a sinagoga passou por duas grandes reformas – a primeira em 1949 e, a segunda, iniciada em 2001 para a cerimônia do centenário de colocação da Pedra Fundamental, realizada em 2 de junho de 2002. Na primeira reforma, foi acrescentado um novo mezanino para acomodar as mulheres, pois, a partir de 1920, a comunidade crescera significativamente com a chegada dos refugiados do Leste Europeu.
A segunda reforma envolvia a restauração do prédio, por isso a sinagoga permaneceu fechada durante um ano. Teve reparos na parte estrutural, recebeu nova pintura e a instalação de um novo sistema de iluminação. O mobiliário também foi restaurado. Apesar da comemoração do centenário, a obra não foi concluída até hoje, pois os reparos necessários foram maiores do que se previra inicialmente. Atualmente, a entidade está envolvida na arrecadação de recursos para o término da obra.
Comunidade atual
Hoje, a vida judaica de Portugal gira em torno de sua principal instituição: a Comunidade Israelita de Lisboa (CIL). Coração e alma do renascido judaísmo português, após séculos de um vazio total, no início do século 19 a CIL inclui a “Shaarê Tikvá”, a mais tradicional sinagoga de Portugal. A comunidade tem ainda o único clube judaico do país, o Maccabi Country Club – entidade criada em 2004 e que atua como importante “braço operador” na área social, cultural e desportiva da Comunidade. Lá também são semanalmente realizadas as atividades do Movimento Juvenil Dor Chadash de Lisboa que reúne cerca de 50 jovens todos os domingos. A CIL, também ofecere atividades sistemáticas para a 3ª idade (Grupo Guil Hazzav) e realiza em média de 12 a 15 eventos anuais.
Como na maioria das pequenas comunidades, é árdua a luta para manter o judaísmo vivo, repousando nos ombros de poucas pessoas eternamente apaixonadas pela causa. Sonia Bernfeld é uma dessas ativistas. Brasileira, emigrou há 16 anos para Portugal, e, em 2002, foi convidada para participar da diretoria da CIL, na qualidade de diretora sócio-cultural, função que desempenha até o momento.
Sonia Bernfeld foi nomeada pela diretoria para acompanhar as obras de restauração da Sinagoga desde 2004, e foi justamente em uma de suas visitas que descobriu um dos muitos tesouros da Shaarê Tivká. Conforme ela própria nos conta: “Um dia, deparei-me com uma caixa com peças de prata; eram 5 pares de rimonim, em péssimo estado de conservação.
Eram tão lindos e antigos, que decidi cuidar pessoalmente de sua restauração. Comecei por catalogar, desenhar, fotografar e descrever todas as peças. Felizmente, encontrei um restaurador especializado em ourivesaria e antiguidades e tive a felicidade de encontrar um doador, que se dispôs a arcar com o orçamento que me fora entregue. Fiquei tão animada por ver o resultado maravilhoso da restauração, que decidi mandar restaurar o restante dos 26 pares de rimonim e uma belíssima coroa de Torá, todos da Shaarê Tivká”.
Sonia Bernfeld está envolvida, atualmente, na catalogação das peças antigas, entre as quais, inúmeros Yadaim (as ponteiras para a leitura da Torá), placas de prata, 24 Meguilot Esther, livros antigos e outros. Ela imagina que ainda vá encontrar muitos tesouros nas salas da sinagoga, que permanecem fechadas há algum tempo, pelo fato de, infelizmente, não haver um inventário das peças.
Mas o que significa ser judeu em uma comunidade como a de Lisboa? Sonia responde que Portugal é o país mais pró-judaico da Europa. Os judeus locais tiveram grande importância cultural e científica e muitas famílias portuguesas reconhecem, com orgulho, sua origem judaica.
Hoje há total liberdade religiosa. Porém, sendo a comunidade muito pequena, o dia-a-dia é difícil. Não há rabino fixo, escola judaica, nem loja de produtos casher. Há uma única loja com alguns produtos casher, mas nem sempre todos conseguem o que precisam. No ano passado, em Pessach, por exemplo, nem todos conseguiram comprar matzá.
Atualmente, a Sinagoga Shaarê Tikvá realiza serviços religiosos às sextas-feiras à noite, aos sábados e nas Grandes Festas. A sinagoga é a única de Lisboa e seu pleno funcionamento representa uma grande vitória sobre a Inquisição, bem como os demais sistemas totalitários que, em vão, tentaram erradicar o judaísmo.
Fonte: http://www.morasha.com.br/comunidades-da-diaspora-1/shaare-tikva-simbolo-do-judaismo-portugues.html